The Sandman, da Netflix: uma adaptação dos sonhos

É sempre um desafio adaptar uma obra literária de sucesso – e não tenha dúvida que os quadrinhos de The Sandman, criado em 1987 por Neil Gaiman, é exatamente isso. Repleto de referências mitológicas, filosóficas e literárias amarradas a um bom roteiro, a HQ ganhou não só os prêmios mais importantes dos quadrinhos nos Estados Unidos (quatro Eisner Award e três Harvey Award, apenas para citar alguns) e no mundo (inclusive no Brasil, onde levou vários HQMix), como foi ainda a primeira história em quadrinhos a receber um prêmio literário: o World Fantasy Award, na categoria “melhor história curta” – concedido a um dos capítulos da história, A Midsummer’s Night Dream.

Repetir tamanho o sucesso em outra mídia é difícil mesmo quando o autor, no caso o genial Neil Gaiman, faz parte da adaptação.  Felizmente para os fãs e também para aqueles que não tiveram a chance de ler os 75 “capítulos” da história do Senhor dos Sonhos e dos demais perpétuos  (clique aqui para ler a sinopse de todos eles), a tarefa foi cumprida a contento na série lançada neste dia 5 de agosto de 2022 pela Netflix, já com a primeira temporada completa para aqueles que gostam de maratonar ou simplesmente não resistem a ver como a história acaba.

Sim, os quadrinhos provavelmente são melhores – há que se aguardar as demais temporadas e a conclusão da série do serviço de streaming para afirmar de maneira contundente. Mas, como já aconteceu com obras como Game of Thrones (e citar esta série aqui não é por acaso, já que há bons atores dela em papéis de The Sandman), os leitores de Gaiman que assistirem à nova atração ficarão satisfeitos ao verem uma adaptação bastante fiel, mas com mudanças agradáveis e algumas surpresas que trazem um certo frescor à história.

E, como os quadrinhos chegaram ao final em 1996, diferentemente de GOT não haverá nenhuma necessidade da produção arriscar um voo solo no fim da história em virtude da conclusão não ter sido escrita pelo autor original –  aliás, a série da HBO Max chegou ao fim em 2019 e até agora não há nem sinal de que George R. R. Martin irá lançar o(s) livro(s) faltantes…

De volta ao The Sandman da Netflix, quem nunca leu as HQs e gosta do gênero com certeza vai ser fisgado pela série e ter despertado o interesse de ler os quadrinhos. Enfim é o famoso jogo de ganha-ganha.  

A história

Fiel aos quadrinhos, a adaptação da Netflix se foca em Sonho (Dream), um dos setes perpétuos (no original, The Endless), entidades descritas pelo autor como uma família de sete entes conceituais, “ideias envoltas em algo semelhante à carne”. No caso, ele é o Senhor dos Sonhos, responsável pelo reino onde todos os seres vão quando dormem.

Sonho, também conhecido por diversos outros nomes (entre os quais Sandman e Morpheus), é capturado por um grupo liderado pelo mago inglês Roderick Burgess, que na verdade tentava prender a irmã mais velha do perpétuo, ninguém menos que a Morte.   O Senhor dos Sonhos é mantido prisioneiro por décadas e, neste período, tanto o mundo desperto quanto o Sonhar sofrem inúmeras consequências, com as quais Morpheus terá de lidar quando conseguir escapar.

 Quem leu os quadrinhos verá que esta primeira temporada adapta os arcos “Prelúdios e Noturnos” e “Casa de Bonecas” – com um detalhe importante: o capítulo The Sound of Her Wings, no qual vemos Morte pela primeira vez, seria curto demais para um único episódio da Netflix, por isso acabou sendo fundido com o capítulo 14 das HQs, Men of Good Fortune.

O seriado é muito bem produzido e com grandes atuações.  No papel principal, Tom Sturridge encarna Sandman muito bem, com a mistura certa de arrogância, impessoalidade e teimosia (além de um quê de criança mimada) que caracterizam Sonho.

As cenas protagonizadas por ele lembram bastante os quadrinhos. Aliás, os leitores da HQ irão se arrepiar com algumas delas e ao descobrir, nas cenas em que o Sonhar é mostrado logo pela primeira vez, personagens icônicos como Martin Tenbones e Mervyn Cabeça-de-Abóbora.

Também cabe ressaltar interpretações maravilhosas como a de Charles Dance como Roderick Burguess – impossível não lembrar dele como o lorde Tywin Lannister de Game of Thrones em alguns momentos, em especial na relação com o filho Alex Burguess – e a de David Thewlis como  John Dee. Cada vez que aparece, o eterno professor Lupin de Harry Potter rouba a cena e dá medo em quem assiste.

O episódio 24/7 , por exemplo, ainda que (um pouco) menos sanguinolento que o original 24 hours, é impactante.  E com algumas diferenças que deixarão quem leu os quadrinhos curioso: na série, Rosemary, que dá carona para John Dee, tem um destino bem diferente do que a das HQs. E, como Neil Gaiman não é de deixar pontas soltas, é certo que haverá consequências…

Também estão muito bem no papel a dupla Asin Chaudry e Sanjeev Bhaskar, que interpretam respectivamente Abel e Cain, de maneira muito idêntica aos quadrinhos – ainda que haja aqui mudanças na história original, uma das quais envolve de maneira tocante a gárgula Gregory, que ficou muito fofa na tela, assim como a pequena Goldie.

E, ainda que sejam apenas ouvidas as vozes, o comediante Patton Oswalt e o eterno jedi Mark Hammil arrasam como o corvo Matthew e o já citado Mervyn Cabeça-de-Abóbora. Aliás, vale dizer que no seriado Matthew é mais ativo na história desde o início e que, diferentemente dos quadrinhos, a corvo Jessamy faz parte da desventura inicial do senhor dos sonhos nas mãos do mago Burguess.

Ainda neste sentido, o pesadelo Coríntio (Boyd Holbrok)  também tem nestes capítulos iniciais uma relação mais, digamos, ativa como antagonista de Sandman e há algumas mudanças significativas no arco A Casa de Bonecas em relação a alguns personagens – por exemplo, os pesadelos Brute e Blob foram substituídos por uma única personagem, e Rose Walker e Lyta Hall se conhecem bem antes do que nas HQs.

 

Polêmicas

Os chamados leitores puristas de The Sandman reclamaram bastante em relação à escalação de alguns atores e atrizes para o elenco da série pelo fato de mudanças de gênero e etnia em relação aos personagens originais – algo bastante comum em adaptações de gibis para a tela, diga-se de passagem, em geral visando à inclusão.

Porém é preciso destacar que as interpretações dos “adaptados” estão soberbas e devem sossegar o coração dos inconformados. Jenna Coleman, por exemplo, está ótima como a Johanna Constantine que ajuda Sonho na busca pela bolsa de areia perdida.   

 

Nos quadrinhos, essa tarefa cabe a um descendente da Lady Johanna Constantine original, o cético e sarcástico John Constantine.  A razão da mudança para a série da Netflix não ficou clara – talvez tenha a ver com o fato de o personagem já existir de maneira mais cômica no seriado The Legends of Tomorrow, no qual é muito bem interpretado pelo ator Matt Ryan.

Independentemente da razão, Jenna Coleman dá conta do recado, com a dose certa de ironia e direito a um engraçado (e nojento) exorcismo em um casamento da realeza.

Já a escolha da gigante Gwendolyne Christie (a Brienne de Tarth de GOT) para fazer Lúcifer foi simplesmente brilhante. Além do visual ser muito parecido com o dos quadrinhos, Gwendolyne encarna o personagem como poucos seriam capazes. A épica batalha de Sandman no Inferno, por sinal, é também icônica no seriado – ainda que com algumas mudanças – graças à utilização de efeitos especiais e da atuação perfeita da atriz.

Sim, também não custa lembrar que a Netflix tem outro Lúcifer, no seriado estrelado por Tom Ellis. Mas, ainda que tenha sido (bem) livremente inspirado no personagem de quadrinhos surgido nas HQs de Sandman, a versão da Netflix desviou totalmente do original, tornando-se algo mais cômico e até musical. Nada contra, mas também nada a ver com a história do Senhor dos Sonhos.

 

Por fim, também houve críticas dos puristas em relação ao bibliotecário branco Lucien ter se transformado em uma negra, Lucienne (interpretada pela atriz Vivienne Acheampong), e da perpétua Morte – que muita gente achava ter sido inspirada pela vocalista da banda Siouxsie and the Banshees – ganhar vida na interpretação de Kirby Howell-Baptiste, passando a ser, portanto, uma mulher negra.

Bobagem. Vale lembrar que, conforme descrito na própria história em quadrinhos, a aparência de um perpétuo  depende de quem o vê. É por isso que a princesa Nada enxerga Sandman como um homem negro nas HQs (e no seriado) e Ajax, o Marciano – que não está presente no seriado – vê o personagem como uma cabeça flamejante.

Ou seja, um perpétuo, como uma entidade, não têm um aspecto físico definitivo. Portanto, não há nenhum problema em Morte ser negra ou em Lucien – que vale lembrar, nem é um homem (ser humano) e já foi um corvo –  ser agora do sexo feminino. O que conta é uma boa interpretação e, nesse aspecto, ambas as personagens são ótimas.

 

Vale a pena assistir?

A resposta, sem dúvida, é sim. Quem nunca leu os quadrinhos tem a oportunidade de assistir a uma história bem contada, com ótimo visual, grandes referências, que promove muita reflexão e com muitas cenas e frases marcantes.

E quem leu os quadrinhos vai se arrepiar ao ver cenas do papel “ganharem vida” nas telas e ao mesmo tempo se deparar com algumas mudanças que – claro – vão trazer um misto de surpresa com a curiosidade/vontade de saber “o que Neil Gaiman está aprontando agora.”

Para terminar, então, nunca é demais lembrar uma frase do próprio Morpheus nas HQs, enquanto contempla uma joia dos sonhos: “Facetas, Matthew. Cada faceta captura a luz de seu próprio modo. Ela cintila, chispa e brilha de maneira única. Seria quase possível achar que uma faceta é a joia, e não uma parte dela. Mas, quando movemos a joia uma outra faceta capta a luz…”

Neste sentido, o seriado da Netflix e as HQs são diferentes facetas, cada uma captando a história a seu modo, mas – inegavelmente – The Sandman é, como um todo, uma joia maravilhosa.

NOTA DO CRÍTICO: Esse é bom

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