Em 1986, o escritor inglês Neil Gaiman foi contratado como argumentista pela DC Comics. Após produzir uma minissérie para a editora ao lado do desenhista Dave McKean (Black Orchid), o autor inglês foi convidado a assumir um título mensal.
Inicialmente, Gaiman pediu para fazer roteiros de um personagem já existente, Phantom Stranger (Vingador Fantasma), mas teve a solicitação negada pela editora. Decidiu, então, criar um personagem novo chamado Sandman (literalmente “homem-areia”, um dos muitos nomes do mitológico Morpheus, o “senhor dos sonhos”).
O primeiro número do novo título foi lançado em dezembro de 1987 nos Estados Unidos (no Brasil, a série chegou em 1990), sem que houvesse nenhum compromisso da DC Comics – que publicou Sandman pelo selo Vertigo, dedicado a quadrinhos de terror e fantasia “para leitores maduros” – em manter a publicação. Rapidamente, porém, Sandman caiu no gosto do público adulto.
Cheia de referências mitológicas, filosóficas e literárias amarradas a um bom roteiro, a história agradou também à crítica, tendo arrebatado os prêmios mais importantes dos quadrinhos nos Estados Unidos – como o Eisner Award (1991, 1992, 1993 e 1994) e o Harvey Award (1990, 1991 e 1992) – e em diversos países onde foi publicado (no Brasil, ganhou diversos HQMix, o prêmio considerado como Oscar Brasileiro dos Quadrinhos e reconhecido pela editora estadunidense Marvel como o mais importante da América Latina).
Foi, ainda, a primeira história em quadrinhos a receber um prêmio literário: o World Fantasy Award, na categoria “melhor história curta”, dado ao capítulo 19, A Midsummer’s Night Dream, no qual o personagem principal contracena com William Shakeaspeare e as criaturas mostradas na peça Sonho de uma Noite de Verão.
Apesar do sucesso, o autor – que escreveu toda a série e escolhia diferentes desenhistas para ilustrar cada arco ou grupo de histórias (mantendo sempre as belas artes de Dave McKean como capas) – fez com que o personagem morresse na edição 69, no auge, e encerrou a série no número 75.
A decisão de Gaiman em matar o personagem – a morte ocorreu em 1995 e a série acabou no início de 96 – gerou protestos e lamentos em mais de 40 países onde a série era publicada e até mesmo um funeral via Internet foi realizado, com participação do autor.
A DC/Vertigo chegou a lançar um novo título (The Dreaming) baseado em The Sandman, com personagens que apareceram nas histórias de Gaiman, mas o autor proibiu a utilização do personagem título (o original, mas não o sucessor que surgiu nos últimos capítulos) e a série não teve o mesmo impacto.
Ela foi cancelada em 2001, quando já tinha pouquíssimos leitores, mas acabou sendo retomada em 2018. Além de The Dreaming, outro spin-off surgiu de The Sandman: Lucifer, estrelado pelo anjo caído, publicado originalmente de 2000 a 2006 – um seriado livremente inspirado nas HQs também foi feito com o ator Tom Ellis, na pele do diabo, e se encerrou na Netflix no ano de 2021.
Por sinal, o canal de streaming se uniu a Neil Gaiman para lançar The Sandman como série, gerando grande expectativa em fãs do mundo inteiro – ainda mais após o trailer divulgado em setembro de 2021. A primeira temporada da série de streaming estreou em agosto de 2022, sendo elogiada pela boa adaptação das HQs. Em 2025 deverá sair a segunda temporada, que se tornou a última em virtude da repercussão de uma série de acusações de abuso sexual movidas contra Neil Gaiman e a esposa.
Além da série de HQs de Sandman em si, Gaiman já publicou, com outros artistas, contos e histórias únicas do personagem ou dos demais perpétuos, como o fofo “A festa de Delirium”, desenhado por Jill Thompson, na qual os personagens são mostrados como versões baby de si mesmos.
Enredo
O personagem principal da obra de Gaiman é Sandman, também chamado durante a série por vários outros nomes, como Sonho, Morpheus, Oneiros, Senhor dos Sonhos, Lorde Moldador e Kai’Kul, entre outros.
Trata-se de um dos setes perpétuos, entidades descritas pelo autor como uma família de sete entes conceituais, “idéias envoltas em algo semelhante à carne”. Cada um dos perpétuos (no original, The Endless) vive em seu próprio reino astral, que não são lugares físicos, mas realidades criadas pela consciência dos seres vivos.
Estes, por sua vez, são capazes de perceber apenas aspectos destas entidades, que variam de acordo com a formação cultural, raça e até mesmo espécie de quem vê. “Eles são seres que não são deuses, que existiam antes da humanidade sonhar com deuses e existirão depois que o último deus estiver morto. São sete seres que existem porque, no fundo de nossos corações, sabemos que eles existem. Eles são chamados Os Perpétuos”.
Além de sonho (Dream), os demais integrantes da família dos Perpétuos são o misterioso Destino (Destiny), a bela Morte (Death), Destruição (Destruction), as gêmeas Desejo (Desire) e Desespero (Despair), e a irmã mais nova, Delírio (Delirium).
A história de The Sandman começa em 1916, quando um grupo liderado pelo mago inglês Roderick Burgess realiza uma cerimônia para capturar a Morte e acaba prendendo o irmão mais novo desta, Sonho. Burgess tenta negociar favores da entidade como preço para libertá-la, mas o prisioneiro simplesmente ignora seu captor e este, que já havia privado o perpétuo de seus pertences no momento da captura, decide mantê-lo preso em uma redoma de vidro magicamente selada.
Logo depois da captura de Sonho, em 11 de junho de 1916, pessoas de todo o mundo começam a sofrer com um mal conhecido por doença do sono, no qual adormecem e não acordam mais, ou simplesmente deixam de dormir.
Setenta e dois anos depois (ou seja, em 1988, ano em que a série chega às bancas), Sonho consegue escapar de seus captores e, depois de vingar-se destes, parte em busca dos instrumentos que lhe foram privados, chegando a enfrentar nesta busca alguns demônios e o próprio Lúcifer – que, mais tarde na série, acaba se vingando da derrota imposta por Sonho fechando o Inferno, expulsando todos os demônios e almas torturadas, e dando a chave ao herói.
Após recuperar o que perdeu, Sonho volta a seu reino (o Sonhar) e descobre que em sua ausência o lugar foi quase totalmente destruído e alguns sonhos e pesadelos fugiram para o mundo desperto. A partir daí, a história mostra como o herói recupera seu reino e passa a contar uma série de pequenas sagas envolvendo sonhadores e o reino do sonhar.
Em muitas das sagas são focadas histórias ocorridas no passado distante de Sonho, fazendo com que o público leitor saiba mais sobre o personagem, suas atitudes e como sua personalidade foi (ou não) moldada através dos tempos.
Se quiser ver detalhadamente o que aconteceu em cda capítulo das HQs, clique aqui para ler as sinopses de todos os 75.
Personagens
Além de Sandman, os outros perpétuos são:
Destino (Destiny) – É o mais velho dos perpétuos, e vive acorrentado a seu livro, no qual está escrito tudo o que foi, é ou será. No início havia a Palavra, e ela foi escrita à mão no livro de Destino antes mesmo de ser dita. Alguns acham que ele é cego, enquanto outros acham que ele só pode ler seu livro e enxergar os intrincados padrões da vida através do tempo. Destino não deixa pegadas. Se você caminhar pelos jardins de Destino, verá que ele se divide o tempo todo, o obrigando a escolher para onde vai todo o tempo. Contudo, estranhamente, se olhar para trás enxergará um único caminho. Destino não projeta sombras.
– Morte (Death) – Um dia você a encontrará e descobrirá por si mesmo(a)
– Destruição (Destruction) – Para que haja mudança, é preciso que haja destruição. Nada realmente novo pode existir sem que o velho seja destruído. Ninguém procura Destruição e continua igual ao que era… Mas o irmão pródigo um dia cansou de seus deveres e abandonou seu cargo. Ainda assim, o mundo continuou a mudar e a se destruir, talvez de maneira ainda mais selvagem.
– Desejo (Desire) – É improvável que qualquer retrato lhe faça justiça, uma vez que olhar para ela (ou para ele) significa amá-lo (ou amá-la) dolorosa e apaixonadamente, a ponto de nada mais importar. Desejo sorri em breves lampejos, da mesma forma que o brilho do sol reluz em um gume de faca. E há muito mais do gume de uma faca na essência de desejo. Desejo é tudo que você sempre quis. Seja lá quem você for. Ou o que for. Tudo.
– Desespero (Despair) – Desespero é irmã e gêmea de Desejo. Diz-se que, no reino dela, há uma infinidade de pequenas janelas penduradas no vazio. A cada janela aberta, uma cena diferente se revela. Em nosso mundo, a vista é um espelho. Assim, quando você fita seu próprio reflexo, nota os olhos de Desespero sobre si e às vezes a sente agarrando e apertando seu coração. Desespero diz pouco, mas é paciente.
– Delírio (Delirium) – Ela cheira a suor, vinho azedo, noites tardias e couro velho. Seu reino é próximo e pode ser facilmente visitado, mas as mentes humanas não foram feitas para compreendê-lo e os que viajam a ele conseguem relatar apenas fragmentos do que viram. A aparência de Delírio, “um amontoado de ideias vestidas no semblante da carne”, é a mais variável dos perpétuos. Porém, ela tem olhos de cores diferentes, um verde-esmeralda bem vivo, salpicado de pontos prateados que se movem incessantemente; o outro do mesmo azul que esconde sangue dentro das veias mortais. Quem pode saber o que Delírio vê através de seus olhos desiguais? Delírio um dia foi Deleite, mas isso foi há muito tempo.
O núcleo de Sandman tem diversos outros personagens fixos, como o corvo Matthew, amigo e assistente dele; o bibliotecário Lucien; o amigo humano Rob Gadling ; o zelador Merv Cabeça de Abóbora; os bíblicos Cain, Abel e Eva; o pesadelo Coríntio e diversos outros sonhos bons e ruins.
Sandman também contracena nas HQs com personagens imaginários e reais, que vão desde criaturas fantásticas e lendárias como fadas (entre os quais a rainha Titânia e o rei Oberon, que aparecem em Shakeaspeare em Sonho de uma Noite de Verão) a seres mitológicos e bíblicos (Lúcifer, os anjos Duma e Remiel, deuses nórdicos como Thor, Odin e Loki, deuses egípcios como Bast e Anúbis, mitos gregos como Orpheu e as Fúrias – as Hecateae, as três que são uma).
Há ainda personagens reais e históricos, como o imperador romano Otávio Augusto, o “imperador dos Estados Unidos”, Joshua Norton, o revolucionário francês Robespierre e o dramaturgo William Shakeaspeare, que na HQ teria feito um pacto com Sandman para dar vida aos sonhos dos homens e, para honrar a barganha, escreve dois contos para Sonho: Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade.
Curiosidade: dissertação de mestrado na Unicamp diz que Sandman é metáfora para mortes de personagens em quadrinhos
Junto a Superman e Rê Bordosa, The Sandman é um dos personagens que integra a dissertação de mestrado A Morte do Herói – Introdução ao estudo de sobrevivência de modelos míticos nas Histórias em Quadrinhos.
Defendida com sucesso em 2002 pelo jornalista e professor Dario DJota Carvalho (criador do site MundoHQ) na Faculdade de Educação da Unicamp, a tese fala sobre o porquê dos heróis de HQs morrerem sendo que, dentro das histórias, eles podem viver eternamente.
Para o autor, a história de Sandman é uma espécie de metáfora do que ocorre com os personagens das HQs: eles precisam se adaptar, mudar, para corresponder aos valores do mundo ao qual estão ligados.
“Quando não consegue adaptar-se à mudança dos tempos e dos valores, quando não pode mudar, o herói está fadado a morrer – como Rê Bordosa – ou ainda a morrer para que possa surgir de novo, renovado, como também ocorre com o Super-Homem, que morreu, ressuscitou e ao voltar já passou por várias mudanças de poder, visual, uniforme e, claro, valores. Gaiman também metaforiza este tipo de morte com o próprio Sandman, que uma vez morto foi substituído por uma outra entidade que assumiu seu nome e funções, ainda que tivesse personalidade, aparência e valores diferentes, ‘uma faceta da mesma joia’.
Sandman, quadrinho e metáfora, mostra de maneira clara que tanto no mundo real quanto no mundo de ficção atrelado a ele os sonhos e os heróis precisam mudar e, muitas vezes, morrer para dar lugar a outros sonhos e heróis”, diz DJota na dissertação (cuja íntegra pode ser conferida clicando aqui).
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