Se o coronavírus deixar, Os Novos Mutantes estreia nos cinemas mundialmente em 28 de agosto de 2020 (era para ser em abril), mas antes mesmo de chegar perto da telona o filme rescendeu uma antiga polêmica: a cor da pele de personagens em seriados e filmes na TV e no Cinema deve ser a mesma que a das histórias em quadrinhos que os inspiram?
No caso em específico, a confusão envolve duplamente um brasileiro, ainda que de maneira involuntária. Um dos mutantes do título é Roberto da Costa, o Mancha Solar, que nos quadrinhos nasceu no Brasil e é um adolescente negro. Porém, no filme ele é interpretado por Henry Zaga, que também é nascido no Brasil, mas é branco.
A escolha gerou uma série de críticas na Internet, com direito a acusações de que a Marvel teria promovido um “whitewashing” (termo quando produções alteram histórias originais e colocam atores brancos para interpretarem personagens de minorias étnicas, indicando aí um racismo implícito ou explícito).
Pra piorar um pouquinho os ânimos, além de Mancha Solar outra personagem também teve a etnia trocada: Cecilia Reyes, que nos quadrinhos é negra e porto-riquenha, será interpretada pela atriz branca (e brasileira) Alice Braga. Neste último caso, porém, até há uma explicação plausível: a atriz originalmente escalada para o papel, Rosário Dawson (uma americana de ascendência afro-cubana), desistiu e Alice estava disponível para uma substituição em cima da hora.
Antecedentes
Esta não é a primeira vez que a Marvel é acusada de “branquear” personagens para o cinema. Em 2016, em Dr. Estranho, a escolha da atriz Tilda Swinton para interpretar o Ancião, originalmente um homem asiático, mais especificamente do Tibete, também deu o que falar.
Na época, contudo, foi ventilado que a origem tibetana do personagem foi deixada de lado por medo de o governo chinês censurar o filme por lá em virtude das questões políticas entre os dois países. O roteirista C. Robert Cargill chegou a dizer em entrevista que é melhor não mexer nos atritos entre a região do Tibete e o governo da China, pois o prejuízo seria enorme.
No caso dOs Novos Mutantes, contudo, até o momento não apareceu nenhuma justificativa. O que não necessariamente quer dizer que seja um whitewashing. Trocar gêneros, etnias e idades de personagens quando eles fazem a transição de um gibi ou de um livro para as telas é normal quando se faz ajustes no roteiro ou mesmo quando um diretor enxerga em um ator ou atriz a melhor escolha para interpretar um papel.
Porém, o que está causando controvérsia é que a escolha de Henry Zaga para fazer Roberto da Costa altera totalmente na história original do personagem, apresentado pela primeira vez nos quadrinhos em 1982. Nas HQs, o mutante descobre os poderes após ser vítima de racismo em um jogo de futebol. No filme, as habilidades mutantes surgem quando ele está desfrutando um, digamos, momento íntimo com a namorada.
Blackwashing?
Mas enquanto não aparece nenhuma explicação para a mudança de Mancha Solar , é melhor conceder à Marvel o benefício da dúvida. Afinal de contas, tanto a Casa das Ideias (como é conhecida a editora) quanto a concorrente DC já promoveram diversas mudanças de etnia nas telonas por uma boas razões. Em especial, inclusão e representatividade.
Isso porque a maioria dos super-heróis badalados que se firmaram como ícones mundiais e ganharam as telas surgiu entre o ano de 1938 (se considerarmos o Superman como o primeiro dos supers) e a década de 1970. Como tanto o mercado consumidor como o produtor americano eram em sua maioria branco, o resultado foi claramente refletido nas páginas das HQs.
Não que não houvesse heróis negros. Ainda que nos primeiros tempos eles tivesse sido relegados a papéis secundários e parcerias – vide Lothar (de Mandrake, ) e Guran (do Fantasma, de 1936) – com o passar do tempo o espaço foi se abrindo para personagens como Pantera Negra (1966), The Butterfly (1971), Luke Cage (1972), Tempestade (1975), Misty Knight (1975), Raio Negro (1977) e diversos outros heróis e heroínas.
Mas, mesmo no papel principal, eles nunca tiveram tanto espaço quanto os que vieram – e se estabeleceram – primeiro. Tanto que nos idos de 1990 a editora Milestone ganhou espaço nos Estados Unidos justamente focando em heróis afrodescendentes, entre os quais se destacaram Icon (uma versão negra do Super-Homem) e Static Shock, que posteriormente ganhou no Brasil o nome de Super Choque. Ambos acabaram migrando para a DC Comics. Mas esta é uma outra história…
O fato é que autores e produtores se tocaram que havia poucos negros nas histórias de heróis nos quadrinhos que queriam levar para as telas. Era preciso mudar isso . Assim, ocorreu uma espécie de “blackwashing” em várias histórias. Sorte a nossa.
Nicky Fury
A princípio, os fãs dos quadrinhos nunca gostaram muito de ver seus personagens favoritos diferentes na telona e não estamos falando aqui (ainda) sobre etnias. Em tempos imemoriais nos quais a Internet não existia oficialmente, a escolha de Michael Keaton para ser o Batman nos cinemas em 1989 foi amplamente criticada pela pouca altura do ator e por ele não parecer o atlético Bruce Wayne dos quadrinhos.
A Warner Bros tentou corrigir isso em 1995 escolhendo Val Kilmer para o papel em Batman Eternamente e, apesar do físico mais acertado, foi amplamente criticada porque o ator era loiro e não moreno como Bruce Wayne.
Difícil lembrar quando as mudanças de etnia começaram, mas a mais significativa delas é bem fácil de apontar.
Criado em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby, Nicholas Joseph Fury era um inicialmente um herói da Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, tornou-se um consagrado espião da agência SHIELD. Era, também, branco.
Em 2002, porém, a Marvel criou uma série planejada para ser limitada (duraria até 2004), na qual desenvolveu um universo paralelo com versões modernizadas de seus heróis, batizado de Ultimate. Nele, Nick Fury foi recriado como um homem negro bastante parecido com o ator Samuel L. Jackson (em uma história o personagem até zombava do fato, dizendo que se fossem fazer um filme dele o ator faria seu papel).
O próprio Jackson leu o gibi, se achou parecido e, surpresa, em 2008 estreou como Nick Fury no filme Homem-de-Ferro, repetindo o papel continuamente em todos os filmes Marvel desde então. Resultado: a maioria dos fãs sequer lembra que Nick Fury era branco. As novas gerações nem sabem que ele um dia não foi um homem negro.
The Flash
O seriado The Flash, da CW (disponível na Netflix), também causou polêmica entre os fãs de quadrinhos da DC Comics por mudar a etnia de dois personagens. Iris West, a eterna paixão de Barry Allen nos quadrinhos, era branca . Na telinha, porém, coube a excelente Candice Patton dar vida à personagem.
Da mesma forma, Wally West – mais conhecido como Kid Flash – deixou de ser um garoto ruivo e ganhou vida na interpretação de Keiynan Lonsdale. Esta mudança causou ainda mais barulho entre os leitores do gibi no início da série, pois nos quadrinhos Barry morreu nos anos de 1980, na série Crise nas Infinitas Terras, e foi substituído por Wally como The Flash.
Alguns “puristas” então se revoltaram porque achavam que na TV o mesmo ocorreria e que o Flash passaria a ser negro, algo totalmente diferente das HQs que eles amavam. Por enquanto isso não ocorreu e talvez nunca ocorra.
Afinal, vale lembrar, a série não necessariamente segue os mesmos argumentos das HQs, tanto que Barry passou incólume pela versão televisiva da Crise nas Infinitas Terra e nem mesmo as relações de parentesco entre os personagens são exatamente iguais no seriado. Na HQ, por exemplo, Wally é sobrinho de Iris, com quem Barry se casa. No seriado, Iris e Wally são irmãos. Por sinal, o pai de Iris na TV, o detetive Joe West, sequer existe nos quadrinhos: lá ele é Ira West, um respeitável cientista caucasiano.
Tocha Humana e o amigo do Super-Homem
Diferentemente do que ocorreu em The Flash, a mudança de pele em O Quarteto Fantástico de 2015 não deu muito certo (para sermos justos, nem tampouco o filme). Michael B. Jordan foi escalado para viver o originalmente loiro de olhos azuis Jonny Storm, mais conhecido como Tocha Humana. Não deu liga, mas o ator voltou ao universo Marvel por cima, interpretando o vilão Killmonger em Pantera Negra.
No mesmo ano de 2015 estreou na CW o seriado Supergirl, que também trouxe mudanças em relação aos quadrinhos. Notadamente, em relação a Jimmy Olsen, amigo do Superman. Se nos quadrinhos originais ele é um baixinho ruivo e irritante, nas telinhas ganhou vida por meio do atlético Mehcad Brooks.
Aliás, outro herói de Supergirl, o fantástico Ajax, o Marciano (Martian Manhunter), também é interpretado por um ator negro, David Harewwod. Criado em 1955, Ajax é um transmorfo e em suas HQs já se transformou nos mais diversos e variados tipos de seres humanos, de ambos os sexos. Mas seu alterego nos gibis, o detetive John Jones, é um homem branco. Ou era.
Mary Jane
Também chocou num primeiro momento (mas passou assim que os filme chegou aos cinemas) a escolha de Zendaya para dar vida a Mary Jane, namorada – e depois esposa – do Homem Aranha nos quadrinhos.
Contudo, a escolha da atriz e cantora, que fez a estreia no papel em Homecoming (2017) e a repetiu nos filmes seguintes, causou estranheza nem tanto por ela não ser ruiva, uma característica marcante da MJ dos gibis, mas principalmente pela diferença física da personagem original, que nas HQs fez carreira como uma supermodelo voluptuosa.
Orange is the new black
Por fim, um dos casos mais recentes que despertou a irritação dos fãs foi a versão de Estelar para a ótima minissérie Titãs (lançada em 2018). Natural do planeta Tamaran, a personagem é uma alienígena de pele alaranjada e olhos verdes. No seriado, porém, a opção foi manter a pele negra da atriz Anna Diop, elencada para o papel.
A ira dos fãs, porém, não teve nada a ver com a cor da pele e, sim, com a peruca horrenda que colocaram na personagem. Felizmente, a interpretação de Anna e os bons roteiros quase fazem o espectador esquecer da cabeleira. Quase.
Concluindo
Não há dúvida de que mudar a aparência de personagens ao longo dos anos ou em diferentes mídias é algo mais do que corriqueiro. Há erros e acertos nestas escolhas e, na maioria das vezes, elas chamam atenção e causam certa estranheza em quem estava acostumado com a história original.
Mas o foco tem que ser esse: a história. Se ela é boa, se o personagem se encaixa, se o ator/atriz desempenha bem o papel, bem, já cantava Michael Jackson: “It don’t matter if you’re black or white.” Desde que, claro, por trás da mudança as razões sejam boas e não incluam qualquer tipo de preconceito ou racismo.
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