Ok, vamos combinar que “freira guerreira” (ou irmã guerreira, como queiram) parece um ótimo nome para um filme B, daqueles de qualidade bem questionável. Mas, longe disso, trata-se de uma boa série de histórias em quadrinhos que acaba de ser transposta para as telas pela Netflix. E com ótimos resultados, é bom registrar.
Claro que, como a história traz como personagem principal uma adolescente que mata demônios, alguns apressadinhos já logo concluíram que a personagem principal era uma espécie de Buffy (a caça-vampiros) usando hábito. Ledo engano.
Warrior Nun Areala
O seriado da Netflix é baseado em uma história em quadrinhos estadunidense de 1994 (três anos antes de Buffy surgir, portanto), desenhado em estilo mangá por Ben Dunn. Inicialmente, a HQ foi publicada até 2005 pela Antartic Press, com alguns lançamentos esparsos na década seguinte.
Com um toque de humor e muita ação, Dunn apresentou ao mundo a irmã Shannon Masters e a Ordem da Espada Cruciforme, uma organização militarizada secreta composta por freiras guerreiras (e alguns padres com poderes místicos) a serviço da Igreja Católica.
Segundo a história, a ordem teria sido criada em 1066 quando uma valquíria chamada Auria renunciou ao paganismo e recebeu poderes dados por um anjo, sendo rebatizada Areala em homenagem a ele. A ex-valquíria uniu em torno de si uma série de mulheres que treinou para ser guerreiras da igreja – todas elas tornaram-se freiras – e, juntas, elas lutam contra demônios do inferno. Sim, eles existem e Areala os enxerga.
Com a morte de Areala, porém, o cargo e poderes foram passando para outras freiras guerreiras. Assim, cada geração teve uma Areala, uma espécie de avatar feminino na luta pelo bem, até chegar a Shannon Masters, a heroína dos quadrinhos de Bem Dunn.
Inspiração verdadeira
Uma curiosidade interessante é que Dunn criou a Ordem da Espada Cruciforme (no orginal, Order of Cruciform Sword ou OCS) baseado em uma capela real da Fraternidade Notre Dame estabelecida no bairro novaiorquino do Harlem.
Nela a irmã Maire Chantel era faixa preta de judô e lutava Tae kwan do e outras Freitas, entre as quais a madre superiora, aprenderam artes marciais para se defenderem da violência urbana. A história saiu no The New York Times e Bem Dunn, que foi aluno de escolas católicas na infância e adolescência, leu o artigo e se inspirou para criar a OCS.
Apesar de as HQs de Dunn sempre colocarem a Igreja Católica como uma força inequívoca do bem (ainda que com alguns indivíduos equivocados dentro dela), a HQ dividiu opiniões dentro da instituição. O autor recebeu tanto críticas em relação a possíveis blasfêmias quanto elogios de autoridades eclesiásticas e, principalmente, de freiras.
Outras mídias
A série chamou a atenção do mercado e ganhou linha de action figures com as personagens principais. Uma tentativa de anime (desenho animado estilo japonês) chegou a ser realizada, com abertura feita pela mesma equipe de X-Men Animated, mas por falta de dinheiro o projeto (ainda) não saiu do papel.
Um filme / live action também estava em produção, mas foi suspenso em 2018, quando a Netflix comprou os direitos para fazer o seriado que acaba de estrear, com criação e direção executiva de Simon Barry.
Adaptação…ou continuação?
O seriado da Netflix segue a mesma base dos quadrinhos, mas com diversas diferenças. A primeira Areala nele, por exemplo, foi uma “cavaleira” que defendeu a igreja na época das cruzadas e, ferida mortalmente, foi auxiliada pelo anjo Adriel.
Segundo a lenda que atravessou os séculos, para impedir que ela morresse o ente divino teria retirado a própria auréola (ou Halo) e colocado no corpo da moça, trazendo-a de volta a vida e concedendo poderes para que ela enxergasse – e enfrentasse – as forças do inferno.
Assim como na HQ, sempre que uma Areala morre, o poder é literalmente passado para a próxima melhor guerreira disponível por meio da retirada do Halo no corpo da antecessora e a colocação dele na próxima da fila. E é justamente neste processo que a personagem principal do seriado se encaixa, de maneira involuntária.
O nome dela é Ava (interpretada pela atriz portuguesa Alba Baptista) e, como descobre o espectador logo no primeiro episódio, ela é a sucessora da Shannon Masters dos quadrinhos. A série começa justamente quando Shannon é vítima de uma emboscada e, na tentativa de esconder o Halo, uma das demais irmãs guerreiras esconde a auréola no cadáver de Ava.
Isso mesmo que você leu: cadáver. A garota, uma órfã tetraplégica que passara os últimos 12 anos num orfanato (nada) católico, acabara de morrer. E ressuscita graças ao halo.
Curtindo a vida
Para alguém que passou a vida presa a uma cama não sentindo nada do pescoço para baixo, acordar bem e com poderes estranhos é, claro, uma festa. Assim, inicialmente, Ava vai descobrir a vida.
Ela rapidamente se envolve com um grupo de jovens belos e rebeldes que está se divertindo na Europa – aliás, os cenários da série em diversos países são muito bonitos – e temporariamente passa a curtir com a galera.
Mas com grandes poderes angelicais vêm grandes demonidades. Logo ela se vê metida em situações envolvendo criaturas nada agradáveis e é descoberta pela Ordem da Espada Cruciforme, que está dividida entre ajudá-la ou pegar o Halo de volta para que seja passado a Lilith, a freira guerreira que deveria ter recebido o poderoso objeto.
A partir daí, a história vai mostrar as desventuras de Ava – declaradamente uma pessoa cética e com poucas razões para acreditar na Igreja – e a relutância em vestir o “hábito” de freira guerreira, em meio a uma série de batalhas entre o bem e o mau, guerras de poder internas da Igreja e uma disputa que está ocorrendo em paralelo entre uma cientista e o clero
Ação, humor e intrigas
Com um roteiro bem amarrado e uma série de mistérios a serem resolvidos, Warrior Nun é um seriado que dá gosto de assistir e a segunda temporada promete ainda mais. Porém, engana-se quem acha que vai ver apenas cenas de ação e “ficção sobrenatural”. Elas existem e são muito boas, com destaque para as lutas, em especial as capitaneadas pela mortal irmã Beatrice (e as de Shotgun Mary e Lilith, inclusive entre si, não deixam nada a desejar).
Porém, como o roteiro lida com intrigas políticas – envolvendo até mesmo o Vaticano – e alguns questionamentos e reflexões religiosas/filosóficas, há momentos em que a ação demora um pouco a engrenar para que a história seja construída. Mas a monotonia passa longe, não só porque a trama é interessante como também porque, a exemplo dos quadrinhos, o alívio cômico (e inteligente) sempre surge quando o tédio ameaça se instaurar.
Na maior parte das vezes ele vem da própria Ava, que externa algumas opiniões intrigantes ou, por vezes, tem pensamentos que são ouvidos pelo espectador. Quando o padre Vincent, por exemplo, explica que trabalha na Ordem para “suprir as necessidades das irmãs”, Ava ironiza em pensamento: “Nem todas as necessidades.”
Já em outra cena, quando ambos passam no pátio em rente a uma imensa e única estátua erigida para homenagear um religioso, ela não se aguenta e dispara em alto e bom som: “Parabéns, patriarcado! Todas as heroínas são mulheres, mas a estatua é de um cara.”
Ah, um outro detalhe interessante é a nomenclatura de cada episódio. Em vez de um título, cada um recebe como nome um versículo, que dá uma pista do que vai ocorrer. A não ser que o leitor seja uma bíblia ambulante, ele pode se divertir caçando a citação no Google antes de cada episódio.
Igual, mas diferente
Apesar de Ava ser a maior diferença entre os quadrinhos e o seriado, ela não é a única. Shotgun Mary, uma das personagens favoritas dos leitores que ganhou até alguns gibis-solo, passou por uma salutar troca étnica. Em vez de ser loira, como nos quadrinhos, ela agora é uma mulher negra (Toya Turner, com ótima interpretação). Porém, continua fodona como sempre.
Lilith, que nos quadrinhos é uma princesa demoníaca que se opõe ao próprio capeta (e tem uma capa que se transforma em asas de morcego), é bem diferente no seriado. Ela é de uma família que tem mulheres na Ordem há gerações e muitas delas já foram portadoras do Halo.
Na verdade, a ambiciosa e habilidosa lutadora Lilith é a escolhida para suceder Shannon no começo do seriado, mas em decorrência dos acontecimentos acaba sendo trocada por Ava (o que faz com que ela não goste muito da garota).
No decorrer da primeira temporada, porém, acontecimentos fazem com que ela se aproxime um pouco mais da contraparte original das HQs…
Já irmã Beatrice, que caiu nas graças dos fãs da série tanto pelas cenas de luta quanto pela personalidade forte, não existe no gibi, pelo menos não com este nome. A princípio ela parece ter sido uma versão para a tela de Sasuki Yoma, a “irmã ninja” das páginas das HQs.
A quietinha irmã Camilla da série, por outro lado, não parece ter nenhum similar no gibi, ainda que possa ser uma amálgama de vários personagens. O mesmo pode ser dito sobre o Padre Vincent e o cardeal Duretti, entre outros.
Por fim, tanto a Madre Superiora quanto a cientista Jillian Salvius existem em ambas as mídias, ainda que com algumas pequenas mudanças.
Boa pegada
Seja nos quadrinhos, onde durou mais de uma década, ou no seriado que está estreando agora, Warrior Nun é uma boa opção para quem gosta de uma boa história. E a Netflix sabe bem disso, afinal esse não é nem de longe o primeiro gibi que o canal produz ou exibe como seriado. Que o digam Umbrella Academy, Demolidor, iZombie, The Punisher, Riverdale, Luke Cage, Sabrina, Jessica Jones, The Arrow, The Flash, Supergirl, Locke and Key, Raio Negro, Manto e Adaga… A lista é grande e cresce cada vez mais, para a sorte de quem curte um bom seriado.
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