Personagens imortais que vivenciaram momentos históricos da humanidade não são novidade nos quadrinhos. Pergunte a Hob Gadling, de The Sandman (1988), apenas para citar um. Filmes com guerreiros imortais também já são território desbravado – o mais lembrado, e possivelmente pioneiro, claro, é Highlander (1986). A novidade, porém, é uma boa história em quadrinhos com o tema virando filme: The Old Guard, HQ criada em 2017 pela dupla Greg Rucka e Leandro Fernández, acaba de ser lançado pela Netflix.
O roteirista Rucka, por sinal, foi o responsável por adaptar a minissérie em cinco partes (The Old Guard – Opening Fire) para a película dirigida pela ótima Gina Prince-Bythewood, o que garantiu um resultado bastante fiel aos gibis publicados pela editora Image Comics.
Em ambos, a história é a mesma: um grupo composto por quatro guerreiros de diversas épocas, que por alguma razão não têm o hábito de morrer em definitivo, costuma atuar como uma força mercenária em diversos conflitos.
Aliás, há um diálogo bastante interessante quando, questionados se estão do lado dos mocinhos ou dos vilões, um deles responde que “depende do século”. Ou, quem sabe, do ponto de vista de quem venceu e quem perdeu o conflito em questão…
O fato é que, normalmente, estes quatro soldados extremamente eficientes voltam à vida mesmo depois de terem sido estraçalhados por espadas, tiros, granadas, bombas etc. O que não é nada agradável para quem está do lado inimigo.
Imortal, mas com dores diversas
Mas ser imortal não significa ser invulnerável. Primeiro porque voltar à vida não significa que eles não sentem dor a cada ferimento. Segundo porque há a questão da vulnerabilidade emocional: ninguém costuma pensar muito neste “detalhe”, mas ser imortal em um planeta habitado por bilhões de pessoas que morrem normalmente significa ver amigos e parentes partirem dessa para melhor enquanto você permanece, impotente, vendo aqueles que ama morrerem.
Por fim, os integrantes desta chamada Velha Guarda podem morrer, sim. Mas não sabem quando, como ou porquê. Um dia simplesmente começam a não se curar mais como de praxe e batem as botas como qualquer outro ser humano. A princípio, o quarteto é formado por:
Andy (Andrômaca), da Cítia
Interpretada por Charlieze Theron, é a chefe e guerreira mais antiga da equipe. O fato de ser uma cita dá uma pista disso, uma vez que a Cítia foi uma região na Eurásia habitada por um grupo de povos iranianos entre o século VIII a.C. e II d.C. De fato, estima-se que ela nasceu aproximadamente no ano de 4.700 antes de Cristo.
Ou seja, são milhares de anos lapidando a arte da guerra, o que faz de Charlize, oops, de Andy uma badass total, responsável pelas cenas de luta mais empolgantes do filme.
Joe e Nick
Eles se conheceram nas Cruzadas, quando se enfrentaram em uma batalha que terminou inúmeras vezes com ambos morrendo e ressuscitando ao mesmo tempo, retomando a briga até se tocarem que nenhum deles mataria o outro. Almas gêmeas, acabaram se tornando um casal (provavelmente um dos casais gays dos quadrinhos mais fatais já registrados).
Aliás, vale ressaltar que a declaração de amor feita por Joe a Nick em um determinado momento (presente tanto no filme quanto no gibi), dada em resposta a uma típica provocação infantiloide-homofóbica feita por um dos captores da dupla, é uma das mais românticas já vistas em uma história de guerra. E isso não é pouco.
O verdadeiro nome de Joe – interpretado no filme por Marwan Kenzari – é Yusuf Al-Kaysani e ele nasceu em meados de 1066 depois de Cristo.
Já Nicky, cujo nome de batismo é Nicolo Di Genova, nasceu em 1069. No filme, o ator Luca Marinelli dá vida ao personagem.
Booker
O francês Sebastien Lelivre, conhecido na equipe como Booker, é o mais “novinho” do quarteto. Nascido em 1770, ele integrou as tropas de Napoleão e descobriu a imortalidade ao ser “morto” na Rússia, em 1812.
Após a invasão malfadada das tropas àquele país ter dado errado, Booker (no filme, interpretado por Matthias Schoenaerts) acabou enforcado pelos pares ao tentar desertar as tropas francesas em busca de comida. E ficou pendurado por três dias antes dos soldados irem embora e ele conseguir se libertar da forca.
A história do filme
A história do filme da Netflix começa com dois acontecimentos paralelos. Contratados por um ex-agente da CIA para salvar crianças sequestradas por um grupo terrorista, os integrantes da “velha guarda” acabam tendo a imortalidade exposta e um CEO de uma poderosa indústria farmacêutica quer utilizá-los como ratos de laboratório para descobrir a razão deles não morrerem.
A ideia do empresário inescrupuloso, chamado Steven Merrick (interpretado por Harry Melling), é – claro – comercializar a imortalidade e se tornar ainda mais rico e poderoso. Se pra isso tiver que contratar exércitos para prender os imortais e torturá-los por anos, bem, ele não terá nenhum problema ético em relação ao fato.
Em paralelo, uma outra imortal acaba de surgir no mundo, a sargento Nile Freeman (Kiki Layne), morta em ação no Afeganistão … e viva de novo instantes depois. Andy, que também se descobrirá passando por algumas mudanças ela mesma, traz a moça pro grupo em meio aos ataques de Merrick.
Sangue pra todo lado e continuação
Com muitas cenas de guerra e algumas lutas muito bem coreografadas, The Old Guard não fica muito atrás de nenhum filme de Quentin Tarantino. Boas atuações e diálogos interessantes – alguns deles, reflexões sobre benefícios ou não da imortalidade – fazem do filme uma ótima opção para quem gosta de uma boa história.
O fim do filme (praticamente uma cena pós crédito) abre caminho para uma sequência, que está programada para acontecer. Isso porque nos quadrinhos um segundo arco de histórias foi lançado em 2019 (Force Multiplied) e o filme termina justamente apresentando um novo vilão – aquele que protagoniza a continuação dos quadrinhos. Na realidade, a diretora Gina Prince-Bythewood já adiantou que, após conversas com Rucka, pretende fazer uma trilogia na Netflix. Uma boa notícia para os fãs.
Diferença…zinhas
O filme é extremamente semelhante aos quadrinhos, com pouquíssimas diferenças. Além dos cabelos curtos que dão um visual magnífico à Andy de Charlize Theron, no gibi a personagem desde o início demonstra um vazio emocional por viver milhares de anos em uma mesma rotina e busca algum tipo de emoção no sexo descompromissado com diversos parceiros.
O passado dos personagens também aparece bastante nos quadrinhos ao longo das revistas – aliás, a Image disponibiliza o primeiro número para leitura gratuita no site. Assim é possível acompanhar algumas batalhas imemoriais de Andy, a luta de origem de Joe e Nick, e o trágico fim/início de Booker na gelada Rússia. A expectativa é que nos próximos filmes esses flashbacks tenham mais espaço.
Por fim, o vilão CEO dos gibis é bem mais sádico e houve algumas mudanças de gênero e etnia na transposição da HQ para a tela.
O agente James Copley, por exemplo, é branco nos quadrinhos e passou a ser um homem negro no filme. Já o cientista torturador Dr. Ivan foi substituído por uma mulher, a doutora Meta Kozak.
Comentar