O legado de Wakanda

A menina, negra, entra no quarto dos pais. Chorosa, olha para o homem à frente dela e diz: “Papai, você morreu.”  A reação dos pais, a princípio, é pensar que foi um sonho ruim, até que a pequena os leva pelas mãos para frente da TV onde uma reportagem relata que o ator de Pantera Negra, Chadwick Boseman, foi vítima do câncer.  A cena, que realmente ocorreu em uma casa de família na noite de 28 de agosto, dá uma medida do legado não só do ator como, principalmente, do filme.  Todo pai é o herói de sua filha, na vida real e nas brincadeiras. A pergunta é: antes de Black Panther estrear nos cinemas, em qual super-herói uma criança negra podia projetar o pai?

Antes de mais nada, é preciso falar um pouco sobre o jogo de identificação e projeção que ocorre – consciente ou inconscientemente –  entre os leitores/espectadores e os super-heróis e super-heroínas. Um jogo no qual a famosa identidade secreta tem um papel importante. A maioria absoluta dos heróis, quando não está salvando o mundo, assume o papel de uma pessoa comum. São jornalistas, advogados, cientistas forenses, vendedores, estudantes do colegial e por aí afora.

Há ainda outros que são herdeiros milionários, reis, deusas ou guerreiros milenares. Mas a maioria esmagadora, quando está praticando atos heroicos, veste roupas espalhafatosas, colantes coloridos ou uniformes taciturnos. Quando não estão, suas roupas, cortes de cabelo e aspectos passam por uma de uma pessoa normal (a exceção de alguns físicos exageradamente desenhados). Aliás, eles também passam por problemas e situações das pessoas comuns. E com isso, o leitor/espectador se identifica com a identidade secreta e passa a se projetar no herói.

O escritor e filósofo Umberto Eco, na famosa obra Apocalípticos e Integrados (de 1964), aborda o tema falando especificamente do Superman. “Clark Kent personaliza, de um modo bastante típico, o leitor médio torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um contador qualquer de uma cidade americana qualquer nutre esperanças de um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade.”

Basicamente, o leitor se enxerga como sendo Clark Kent (ou Peter Parker ou Kara Danvers) , mas sonha em ser um Super-Homem (ou Homem Aranha ou Supergirl). Simples assim: quando nos identificamos com um personagem, é muito mais fácil entrarmos na história na pele deles. Note, porém, que a maioria das peles é branca. Afinal, esse era a etnia dominante no público consumidor de quadrinhos quando os heróis surgiram e se desenvolveram – do final dos anos de 1930 aos anos de 1970, em especial – e também daqueles que faziam as histórias. Sem mencionar o racismo estrutural.

MIlestone

Fato é, porém, que nos anos de 1990 surgiu uma editora nos Estados Unidos, batizada de Milestone, que percebeu a lacuna. Não que não existissem heróis negros: na Marvel o próprio Pantera Negra surgiu em 1966, Luke Cage em 1972 e Misty Knight em 1975; enquanto na DC o Lanterna Verde John Stewart surgiu em 1972 e Black Lightning estreou em 1977. Mas estes heróis sempre ocupavam o segundo plano, ofuscado por outros há muito queridos e estabelecidos.

A Milestone, contudo, lançou revistas exclusivamente com personagens negros e latinos. Entre eles, Icon – uma espécie de super-homem negro – e Static Shock (batizado de Super-Choque no Brasil). Este último era Virgil Hawkins, um adolescente negro de 15 anos que descobre ter superpoderes ligados a energia e passa a lidar com eles dentro da escola e da comunidade na luta pelo bem – o personagem chegou a ser chamado de “uma versão contemporânea” do Homem-Aranha.

O sucesso foi tanto que, assim que pode, a DC Comics comprou a editora e a absorveu. Aliás, no recente evento DC Fandome,  durante um painel surpresa sobre a Milestone (no qual foi anunciada a retomada do selo), os debatedores negros – alguns deles antigos leitores – falaram sobre o impacto que tiveram quando leram pela primeira vez quadrinhos estrelados por super-heróis que tinham a mesma etnia.

“Toda boa história toca você, eu mesmo sou um grande fã de Super-Homem. Mas quando você lê uma história em que se enxerga no herói, em que ele é igual a você, a alguém da sua vizinhança, a história ressoa muito mais em você”, resumiu um deles.

Representatividade

Desta forma, ainda que tenham demorado, as editoras começaram a refletir a representatividade nos quadrinhos e em todos os demais subprodutos dos super-heróis-  seja por uma questão de justiça ou, não sejamos ingênuos, de mercado. Vendo de uma maneira otimista, quem sabe um misto de ambos.

Novos personagens negros de destaque surgiram, outros apareceram para substituir heróis até então brancos e, em especial no cinema e nas séries de TV de heróis, surgiu o fenômeno da “troca de etnia”: personagens criados nas HQs como brancos – como Nick Fury, Kid Flash , Iris West, Jimmy Olsen, Mary Jane Watson Parker e o alter ego de Ajax o Marciano – surgiram nas telas interpretados por pessoas negras nas telas.

Aliás, mais recentemente foi definida a mudança de um deles “no meio do caminho”: com a desistência da atriz branca Ruby Rose, a série Batwoman terá como nova protagonista Javícia Leslie, que se tornará a primeira mulher-morcego negra.

A inclusão não ficou apenas nas etnias. Mulheres, que antes eram colocadas majoritariamente para atrair a atenção dos leitores com corpos exagerados e colantes grudadinhos, ganharam personalidade e histórias com bons argumentos, conquistando uma boa fatia do mercado.  A diversidade sexual também ganhou espaço, com um número maior de personagens abertamente gays (o primeiro beijo gay nos filmes da Marvel, inclusive, está previsto para ocorrer em Os Eternos, que deve ser lançado em fevereiro de 2021).

Surgiram até mesmo supers transgêneros , como destacou recentemente o desenhista e atual chefe de criação da DC, Jim Lee. “O mundo dos heróis está cada vez mais inclusivo e refletindo o mundo real”, afirmou Lee, destacando que o seriado Supergirl até lançou a primeira superheroína transgênero, Nia Nial/Sonhadora (Dreamer) e que o conceito de multiversos – outro tema bastante falado nas atrações do Fandome – permite trabalhar ainda melhor a inclusão, com versões alternativas dos mais diversos personagens.

Ainda assim, mesmo com todas estas mudanças, o Pantera Negra foi o único blockbuster capitaneado por um super-herói negro até agora. E foram necessários 52 anos para que o herói saísse das histórias em quadrinhos, onde nasceu em 1966, e chegasse aos cinemas, em 2018.

Wakanda Forever

Chadwick Boseman foi um grande ator e um tremendo profissional. Gravou diversos filmes já lutando contra o câncer, sem deixar que a doença o impedisse. Deu vida a personagens fantásticos em interpretações soberbas: em 2013 ele foi a estrela do baseball Jackie Robinson (o primeiro negro a se destacar num esporte reservado até então a brancos) no filme 42; foi James Brown em mais uma excelente atuação em Get On Up (2014); e ainda Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro da Suprema Corte americana em Marshall, de 2017.

A morte prematura, aos 43 anos, chocou o mundo. Porém, ainda que os três personagens acima citados por ele tenham sido pessoas reais que tiveram uma grande contribuição na luta pela representatividade e contra o racismo, o papel pelo qual Chadwick será lembrado será sempre o de Pantera Negra. E, provavelmente, também foi neste papel sua maior contribuição na luta pela inclusão e contra o racismo.

Não se trata aqui de uma questão comercial, ainda que – obviamente – o filme do Pantera tenha chegado a muitos mais expectadores que os outros de Chadwick somados. O fato é que o ator deu rosto – e corpo e alma – a um herói . Mais ainda , a um herói negro.

“O herói representa um padrão de valor, tem a capacidade de satisfazer à necessidade (ou necessidades) de um povo, encarna os valores que simboliza. É, ou se torna, de maneira emblemática, uma soma das aspirações de um indivíduo, de uma sociedade, de uma época”, diz o jornalista Dario Carvalho Júnior em “A Morte do Herói”, dissertação de mestrado em Educação defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2002.

Como Pantera Negra, Chadwick passou a representar aspirações e encarnar valores não de uma época ou de uma sociedade, mas de toda uma raça, de toda uma noção de inclusão. De todas aquelas crianças que antes olhavam ao redor e não encontravam um herói similar a elas em quem se projetar. De todos aqueles pais que quando brincavam com os filhos de super-herói passaram a dizer ou a ser visto por elas como o Pantera Negra. Não é pouca coisa.

O legado de Chadwick Boseman é maior do que o do ser humano que se destacou pela integridade e generosidade, do que o do homem que lutou contra o câncer, do que o do ator que encantou milhões. O legado de Chadwick Boseman é o legado de Wakanda. Forever.

 

 

 

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

Comentar

Follow us

Don't be shy, get in touch. We love meeting interesting people and making new friends.

Most popular

Most discussed

Nós usamos cookies para melhorar sua experiência. Ao continuar, você concorda com nossa Política de Privacidade.