Se no primeiro filme da Mulher-Maravilha a diretora Patty Jenkins definitivamente acertou a mão – com um bom roteiro no qual a heroína deixa a ilha de Themyscira para ajudar os aliados na primeira guerra mundial, cenas de ação e humor na medida certa – infelizmente o mesmo não pode ser dito de Mulher-Maravilha: 1984, lançado no Brasil em dezembro de 2020.
Sim, a continuação tem alguns méritos, tanto que em janeiro ficou na liderança de vendas do ingresso.com – em fevereiro, perdeu pra Tom e Jerry e Monster Hunter . E consta que não está fazendo feio na NET, onde está para alugar.
Porém, 1984 ficou muito (MUITO) aquém do filme original e, provavelmente, das expectativas de quem viu o primeiro e ouviu (inclusive aqui no Brasil, na CCXP) tanto a diretora quanto a atriz Gal Gadot propagandeando o filme.
Para explicar os porquês, o texto a seguir vai destrinchar um pouco do filme e pode haver alguns spoilers. Então, caso você não tenha assistido ainda e não queira arriscar saber alguns fatos de antemão, é melhor parar por aqui. Se bem que, por outro lado, talvez seja melhor ler o texto abaixo antes de se arriscar com o segundo filme da personagem criada em 1941.
Para começo de conversa o roteiro é fraco. Muito se falou na reconstrução de época de 1984 e, de fato, lá estão os uniformes toscos de academia e de cooper (se não souber o que é isso, consulte o google…), os penteados estranhos e cheios de laquê, as roupas esquisitas e as pochetes masculinas, o que garante algumas risadas.
Mas é pouco para tanto auê. Mais ainda, não há nenhuma razão aparente para o filme se passar neste ano e específico, algo que deveria se esperar já que, caramba, o ano dá nome ao filme.
Mas não coloquemos o carro na frente dos bois. O filme começa com Diana relembrando de uma competição amazona que disputou quando criança (uma espécie de triatlo, com diversas provas de habilidade e cujo cenário lembra um pouco de Sonic, The Hedgehog).
A prova termina com a princesa aprendendo uma lição sobre competir honestamente e, pronto: corte pros anos de 1980.
Já se passaram décadas desde a morte do namorado Steve Trevor na primeira guerra mundial (como visto no primeiro filme) e a princesa Diana ainda não superou a perda de seu primeiro amor. Nostálgica e sozinha, ela estabeleceu carreira trabalhando no Museu Smithsonian de Washington e, ao mesmo tempo, atua como Mulher-Maravilha da maneira mais discreta possível (para uma mulher que se veste daquele jeito), ajudando as pessoas e combatendo o crime.
Numa destas aventuras, ela evita um roubo a uma joalheria de shopping que, na verdade, é fachada para negócios escusos. E, uma vez frustrada a ação dos bandidos, algumas das peças roubadas vão parar no museu, onde são examinadas por Diana e pela deslocada gemologista Barbara Ann Minerva (Kristen Wiig), uma mulher pra lá de carente e normalmente ignorada por todos, de quem Diana acaba de se tornar amiga.
Uma destas peças – a Pedra do Sonho – contém inscrições que Diana traduz. Quando está com o objeto na mão ela inconscientemente deseja que Steve Trevor estivesse de volta. E,logo, é o que acontece. Porém, ele volta habitando o corpo de outro homem e eis aqui um dos furos máster do roteiro.
Diana (e todo mundo que está assistindo o filme, diga-se de passagem) passa a enxergar Steve no corpo do rapaz assim que ele se identifica. Ok, mas quem era esse sujeito? De onde veio, ninguém sentiu falta? Não tinha um emprego ou amigos que viram que ele sumiu de cena?
O filme simplesmente ignora o fato de o namorado da heroína ter tomado o corpo de alguém emprestado e ali ele vai ficar até o fim. Aliás, se a pedra é mágica, pra que precisava de um corpo emprestado? Não seria mais simples simplesmente fazer Steve aparecer?
Lá pro finalzinho o filme mostra (por meio de um certo cachecol) que o dono do corpo voltou pro lugar certo. E, se ele sentiu falta do tempo perdido ou teve algum estrago causado pelo empréstimo, ninguém sabe…
Você já deve ter adivinhado que a tal Barbara Ann também desejou sem querer, para a pedra, ser como Diana, uma pessoa que ela acabara de conhecer por alguns minutos. E a partir daí ela se arruma melhor, fica mais chamativa, desperta interesse dos homens e mulheres, e eventualmente se toca que ganhou superforça.
Neste ínterim, também surge Maxwell Lord (Pedro Pascal). Nos quadrinhos, o personagem é um vilão de primeira linha, tendo controlado e manipulado a Liga da Justiça, quase matou Batman e Superman, e teve o pescoço quebrado pela Mulher-Maravilha em cadeia nacional. No filme? É um golpista patético que, por alguma razão não explicada, descobriu a existência da Pedra dos Sonhos. Do nada.
Tirando alguns recortes de jornal encontrados posteriormente no escritório de Lord, que por sinal dão a crer que ele orquestrou o tal assalto (sendo que o filme deixa claro que ele é apenas um golpistazinho looser), não há nenhuma explicação de como ele sabia que o objeto mágico existia.
Mas ele vai ao museu, pega o treco e deseja literalmente absorver o poder dele, o que acontece. O próprio Maxwell, então, passa a conceder desejos para todos que o tocam, podendo em troca fazer seus próprios desejos (isso não é falado ou explicado no filme, o espectador acaba sacando aos poucos).
E aí o roteiro fica mais estranho ainda. De um lado, a escalada de poder de Maxwell não faz sentido algum. Primeiro se torna milionário do petróleo, depois pega os dotes de um megapastor televisivo e quer ter acesso à presidência dos Estados Unidos para, com todo esse poder, fazer uma transmissão para o mundo todo oferecendo desejos a todos.
Porque, a cada desejo que oferece, vai ficando doente. Mas, aparentemente, se a quantidade de desejos for muito grande, ele pode desejar sarar. Não seria mais fácil parar de oferecer os desejos logo no início? Ou já ir desejando sarar antes?
Por sinal, a Mulher-Maravilha percebe o estrago que Lord está fazendo e também que a contrapartida para reviver Steve Trevor foi abrir mão de parte de seus poderes, justamente algo que ela precisa para combater Lord e Barbara.
Uma informação importante, que ela descobre por meio de textos maias aos quais chega também sem muita explicação: as contrapartidas que a Pedra dos Sonhos “toma” quando concede um desejo só são canceladas quando a pessoa abre mão do desejo que fez, o que no caso de Diana significa deixar Steve morrer de novo.
Barbara, por sua vez, aparentemente perdeu a compaixão pelos demais ao ganhar os dons de Diana. E, quando a Mulher-Maravilha tenta deter Lord, ela faz um novo desejo e vai se transformar, como todo mundo já sabia, na Mulher-Leopardo.
Pausa para pensar. Barbara queria ser popular, bonita, sexy. Ganhou tudo isso no primeiro desejo. Então quando Diana resolve intervir e, para não perder o que ganhou, Barbara se transforma num monstro, que não é popular, nem bonito nem sexy. Qual o sentido?
É mais ou menos como a Madrasta da Branca de Neve que, para ser a mais bela, se transforma numa bruxa horrenda para matar a oponente…
Um parêntese: nos quadrinhos já houve quatro versões da personagem Mulher-Leopardo (no original, Cheetah, ou Guepardo – no Brasil os tradutores trocaram o felino). E nas HQs a arquóloga Barbara Ann Minerva assumiu esta forma quando pesquisava uma tribo da África e tomou o lugar da guardiã local, uma criatura com os poderes do Guepardo. Já em 1984, não há nenhuma explicação para que ela assuma a forma felina.
Enfim, a aventura continua e há boas cenas de ação e humor antes do fim, mas com novas complicações de roteiro. Pra citar algumas: Steve Trevor, que pilotava aviões da primeira guerra em tempos que nem radares existiam, entra em um caça de combate criado décadas depois, cheio de botões e equipamentos que nunca viu e sai pilotando de boa, porque “nasceu pra voar”. Ah, tá.
Essa cena, ao menos, vale para os fãs verem um tradicional meio de transporte da heroína no desenho dos Superamigos. Aliás, quem assistia ao desenho deve prestar atenção na fachada do hangar, também uma bela homenagem ao desenho animado.
Outro motivo de dissabor entre os fãs: desde o início do filme, Mulher-Maravilha parece o Homem-Aranha, usando o laço como se fossem as teias do aracnídeo, para se locomover saltando por aí.
Ainda que Washington não tenha tantos prédios quanto a Nova York de Peter Parker, até dá pra aguentar essa. Mas, quando ela começa a laçar aviões, nuvens e raios, fica um pouco forçado demais.
E tem mais: de repente, a Mulher-Maravilha descobre que sabe voar sozinha (pobre avião, não durou nem um filme). E faz o quê? Voa até o apartamento dela pra pegar uma reluzente armadura dourada (que os fãs de quadrinhos conhecem, por exemplo, da série Kingdom Come) para… voar até o local onde estava Max Lord. Ora, por que não foi de uma vez?
E que ninguém argumente que ela foi se proteger para enfrentar a Mulher Leopardo porque, em primeiro lugar, já estava com os poderes em 100% de novo. Em segundo, ainda não sabia da existência da vilã em seu novo físico e, mais, na luta ela mesmo se desfaz da armadura.
Por fim, vale perguntar ainda: quando Max Lord concede desejos para todos via TV, por que o do filho dele não é atendido? E, se alguém pensar em argumentar que no fim do filme isso ocorre, por que o “delay” e qual foi o preço pago pelo garoto à relíquia?
Enfim, o roteiro de 1984 é fraco, extremamente confuso e cheio de furos, o que irritou muita gente. Vale ver como uma aventura leve, sem nenhum compromisso, apenas para se divertir? Talvez.
Até porque há, sim, alguns bons momentos, inclusive a bela homenagem pós-créditos à Lynda Carter, a Mulher-Maravilha do seriado televisivo dos anos de 1970.
Mas é bom saber que este filme é bem inferior ao primeiro em termos de qualidade e roteiro. Convenhamos, 1984 não é, assim, uma Maravilha.
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