As mulheres sempre estiveram nos quadrinhos, mas demorou muito para que o holofote ficasse sobre elas. A frase é da cartunista Adriana Melo, conhecida mundialmente pelo traço exibido em HQs da Mulher Maravilha e Doctor Who, entre outras, e que tem na estante – também entre outros – um Eisner Awards, maior premiação mundial do gênero.
Demorou, mas chegou. A 39ª edição do Troféu Ângelo Agostini, realizada no último dia 30 de janeiro, justamente o Dia do Quadrinho Nacional, é uma prova disso. As nove categorias principais foram conquistadas por artistas do sexo feminino. Os homens só apareceram para dividir por igual a homenagem de Mestres do Quadrinho Nacional, que teve dois integrantes do sexo masculino – Laudo Ferreira e Nilson Azevedo – ao lado das agora mestras Erica Awano e da já citada Adriana Melo.
Vale lembrar que os vencedores das categorias do prêmio Ângelo Agostini – a exceção do destinado aos Mestres – são escolhidas por voto popular, na Internet. A Comissão Organizadora elenca como indicados uma série de lançamentos e artistas em cada área a ser premiada (deixando um espaço para que os internautas escolham uma obra ou autor não listado, se desejarem) e cabe aos leitores escolherem os favoritos. Ou favoritas, neste caso.
Dois fatores importantes colaboraram para que o “holofote chegasse” neste ano. O primeiro deles foi uma mudança planejada pela Associação dos Quadrinhistas e Cartunistas do Estado de São Paulo (AQC-SP), promotora do prêmio, que renovou a Comissão tanto trazendo novos integrantes quando pensamentos. A galera ficou bem mais atenta a lançamentos de autores não só do sexo feminino, mas também mulheres trans, negros, indígenas etc. O resultado foi uma lista de indicados mais heterogênea, com autores de todos os tipos com obras para todos os gostos.
O segundo fator veio na votação em si. Muito mais mulheres votaram neste ano de 2024. “Deu para perceber que neste ano as mulheres agarraram com toda força o processo de votação. Durante muito tempo a AQC recebeu críticas porque o resultado das votações era muito masculino. Isso pegava mal até porque o mercado já não era masculino. O processo de votação estava fora do tempo, estávamos atrasados. Só consegue se mudar isso quando se muda o processo de escolha das pessoas que estão concorrendo. Nesse sentido, as indicações foram muito mais amplas, e aumentou muito o número de pessoas e de mulheres no processo de votação, que foi popular, aberto e democrático. Isso também foi importante, porque ter as mesmas pessoas votando todos os anos gera resultados parecidos todos os anos”, diz o cartunista Bira Dantas, integrante da AQC e da Comissão Organizadora.
Helô é tetra!
E se a voz do povo é a voz de Deus, não há dúvida que o trabalho da cartunista Helô D´Angelo é divino. Afinal, Helô abiscoitou quatro das nove categorias nas quais artistas podem concorrer. Ela venceu a categoria Web quadrinho, com As Tiras da Helô D’Angelo, e – com o álbum Nos Olhos de Quem Vê, lançado pela editora Harper Colins – levou os prêmios de melhor Lançamento, Desenhista e Roteirista.
Nos Olhos de Quem Vê é uma HQ autobiográfica na qual Helô fala sobre as próprias inseguranças, medos, ideias e sentimentos, em especial na época da pandemia de Covid-19. “Fico muito feliz por estar aqui, em especial porque esse livro específico fala da minha trajetória, autoestima, saúde mental…questões que são muito pertinentes, a gente não pode lutar se não estiver com a saúde em dia”, afirmou Helô durante a cerimônia online na qual foram revelados os premiados.
Sobre o fato de ter havido maior inclusão entre os indicados e premiados, ela ponderou: “Acho que é um ótimo primeiro passo, um ótimo conjunto de primeiros passos, mas a gente tem que focar em aumentar sempre a diversidade cada vez mais. Não só mulheres. Temos pessoas fora do eixo Rio-São Paulo fazendo quadrinhos incríveis, temos que melhorar sempre, até porque nosso objetivo é melhorar o quadrinho nacional.”
Lançamento Independente: Amarras
O prêmio de Lançamento independente foi para Amarras, de Cecilia Marins, Barbara Teisseire e Giulia Tartarotti, uma obra de jornalismo em quadrinhos que surgiu como Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo e posteriormente foi lançado pela Tangerina Books. O tema da obra é considerado tabú e de difícil acesso a informações, o que só valoriza o trabalho do trio.
“Foi um trabalho coletivo. A Julia e a Bárbara viram meu TCC sobre jornalismo em quadrinhos e pensaram em fazer um sobre BDSM, sadomasoquismo. Fico muito feliz que elas foram atrás de mim para fazermos juntas. Foi jornalismo em quadrinhos com muito processo, muita propriedade e profissionalismo de nós três. As entrevistas são respeitosas, informações corretas para quem quer conhecer esse mundo”, conta Cecília.
Lançamento Infantil: Afeto
A dupla Natália Sierpinski (roteiro) e Vivi Melancia (arte) ficou – merecidamente – com o Ângelo Agostini de melhor lançamento infantil, com Afeto. A obra é focada na personagem Maria, uma menina de treze anos que acaba de mudar de cidade e começa a estudar em uma escola pública. Além de ter de se adaptar ao novo colégio, ela enfrenta diversos desafios pelo fato de ser uma menina.
“Fico muito feliz por termos ganho e destaco a importância do olhar do troféu em relação à diversidade. Afeto é uma obra -feita por mulheres, com editoras mulheres, que fala sobre questão de gênero. Fico muito feliz também como educadora, por ter vencido com uma história em quadrinhos voltada para jovens”, diz Natália, que é mestre em educomunicação pela Universidade de São Paulo (USP).
“Trabalho desde os 16 com quadrinhos e não esperava ganhar esse prêmio, ainda mais no Dia do Quadrinho Nacional. Isso estoura minha cabeça! (…) É uma honra ter feito Afeto, é uma história muito importante para crianças, jovens e adolescentes… esse é o poder do quadrinho”, complementa Vivi, emocionada.
Fanzine: Papo de Mulher – Almanaquezine de fotonovelas
Na categoria Fanzine, a obra vencedora foi Papo de Mulher: Almanaquezine de fotonovelas, fruto de um projeto de extensão desenvolvido na Universidade Federal do Sul da Bahia. Feita sob a coordenação da professora Danielle Barros, a revista tem 24 páginas e oito histórias distintas.
“É uma produção coletiva de diferentes mulheres, organizada por mim e pela bolsista Evelin Oliveira, fruto de oficina de fotonovela realizada de forma remota ainda no contexto da pandemia. São histórias sobre autonomia feminina em distintos contextos sociais, como trabalho, assédio sexual, família, saúde da mulher negra, maternidade, amamentação, infância, politicas públicas para mulheres. Agradeço muito a todas que participaram e a quem votou na gente”, diz Danielle.
Colorista: Mariane Gusmão (O Menino Rei)
O prêmio de melhor colorista foi para Mariane Gusmão, pelas cores de O Menino Rei, obra lançada pela editora Nemo, com roteiro de Felipe Pan e arte de Olavo Costa. A HQ conta a história do reino de Kemet , até então governado pelo faraó Akhenaten. Ali, os antigos deuses foram trocados por uma divindade única, o disco solar, Aten. Porém, com a morte do faraó, caberá ao filho dele, o pequeno Tutankhaten, assumir os desafios de governar em meio a conspiradores que querem tirá-lo do poder.
“Fiquei muito feliz por ter ganho, foi uma surpresa. Todos os demais indicados na categoria de colorista tem trabalhos muito bons, de grande qualidade, achei que não ia dar pra mim. Menino Rei foi trabalho de muita pesquisa, gostei muito de fazer e agradeço ao Felipe e ao Olavo por ter tido a oportunidade de ter trabalhado mais uma vez com eles”, ressalta Mariane, lembrando que o trio já havia produzido antes Gioconda (também pela Nemo) e já está engatilhando um novo projeto.
Cartunista, chargista ou caricaturista: Laerte Coutinho
Praticamente sinônimo da história do humor gráfico do Brasil, a genial Laerte Coutinho ficou com o prêmio de melhor cartunista, chargista ou caricaturista. Vale lembrar que, assim como nos demais casos, o 39º Ângelo Agostini premiou os melhores de 2021/2022, uma vez que em virtude dos diversos impactos da pandemia o prêmio estava atrasado. A 40ª edição, que premiará os melhores de 2023, deve ocorrer ainda este ano e, depois de alguns anos online, a expectativa é de que cerimônia desta vez seja presencial.
“Essa defasagem que gente vive se deve aos percalços dos últimos anos, parece que a gente está sempre atrás de um tempo que já passou ou ainda vai passar, tem sido cada vez mais difícil fazer o trabalho que a gente tem para fazer… fico supergrata por esse prêmio”, conta Laerte que, o ser elogiada pela grandeza da obra, diz entre brincadeira e a humildade: “Foi sem querer”
Prêmio Jayme Cortez: PerifaCon
O prêmio Jayme Cortez, destinado a eventos e marcos dos quadrinhos, ficou com a PerifaCon, convenção de quadrinhos e cultura pop realiza nas periferias de São Paulo que, em 2023, chegou à terceira edição. O caráter principal da feira é de descentralizar a cultura geek das grandes convenções, normalmente voltadas para um público majoritariamente branco e com relativo poder aquisitivo. Ao mesmo tempo, promove os produtores de cultura pop da periferia.
Por sinal, a PerifaCon também tem entre os fundadores pelo menos uma mulher, a diretora criativa e especialista em cultura nerd-gamer Andreza Delgado.
Mestres do Quadrinho Nacional
A categoria Mestres é a única que não é aberta a voto popular, por uma razão bastante compreensível, como explica Bira Dantas. “O critério para ser indicado nesta categoria é ter pelo menos 25 anos de carreira dedicada ao mundo dos quadrinhos, então é preciso ter um conhecimento mais específico da área tanto para elencar os elegíveis quanto para escolher. Antigamente era aberto ao público, mas o que acontecia é que as pessoas acabavam escolhendo sempre os mesmos grandes mestres, como Mauricio de Sousa e Ziraldo, que já haviam sido premiados.”
O quarteto vencedor deste ano faz jus o título. Érica Awano, única que não pode se fazer presente em virtude de um leve problema de saúde, começou na carreira de desenhista em 1996, trabalhando com mangás. Entre os trabalhos mais conhecidos da artista – a lista é bem extensa – está o mangá nacional Holy Avenger, roteirizado por Marcelo Cassano.
O quadrinhista Laudo Ferreira está no mercado desde 1984, mas começou a ganhar destaque em 1995, quando publicou À meia-noite levarei sua alma, adaptação do filme de Zé do Caixão. Também com um extensa contribuição aos quadrinhos, Laudo tem entre as obras mais conhecidas a trilogia Yeshua, lançada pela Devir entre 2009 e 2014, contando a história de Jesus Cristo.
“É uma grande honra receber esse prêmio. Quando eu soube foi uma alegria enorme, eu faço quadrinhos desde os anos de 1980, vi tantos caras grandes, artistas maravilhosos – mulheres e homens – ganharem esse prêmio e nunca me vi dentro desta categoria. Eu me julgo ainda como uma pessoa que ainda está aprendendo”, diz Laudo.
O cartunista mineiro Nilson Azevedo – que tem entre os destaques da extensa carreira as mais de 2.300 tiras de A Caravela, lançada originalmente em 1975 – também não pode estar presente na cerimônia, mas mandou agradecimento em carta: “Estou com 75 anos e desenho desde que não me lembro. Comecei a publicar em 1967 pelas mãos do Ziraldo, o Pererê mudou minha vida e profissão, assim como os Fradins do Henfil. Para mim, fama nunca foi o mais importante, mas sim o reconhecimento. E receber esse título de mestre significa reconhecimento dos leitores, dos colegas e de todos que amam os quadrinhos”, pontuou.
Por fim, de volta ao começo deste texto, a agora mestra Adriana Melo exaltou as conquistas femininas no prêmio – “isso é maravilhoso, meu coração fica quentinho vendo esse monte de mulher talentosa sendo reconhecidas” – e falou um pouco sobre o fato de desenhar praticamente de maneira exclusiva para o mercado exterior. O que – deixou claro – ocorre puramente por questões de sobrevivência financeira, de ter boletos a pagar.
“Os dois trabalhos que mais me emocionaram foram uma HQ do Doutor Who que se passava em São Paulo, minha cidade natal, na época colonial, e uma da moça maravilha Yara Flor em que ela vinha para o Brasil e o roteirista deixou por minha conta desenhar as cidades brasileiras pelas quais ela passou. Foi maravilhoso desenhar o meu país, queria muito desenhar uma personagem brasileira para uma editora brasileira, se aparecer oportunidade.”
E aí, editoras brasileiras, que tal ter essa mestra por aqui?
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