A resposta para essa pergunta é “talvez”, mas apenas considerando-se a possibilidade de o Homem-Morcego não desenvolver os sintomas e olhe lá. Afinal, se dependesse de usar máscara – sobre o nariz e a boca, é bom frisar – ou de se isolar, Batman com certeza não seria nenhum exemplo positivo e Gotham certamente pereceria. É o que dá pra se concluir (re)lendo a minissérie Contágio e a sequência dela, O Legado do Demônio, ambas lançadas aqui no Brasil pela editora Abril em 1998 – e dois anos antes pela DC Comics nos EUA.
O roteiro da história é simples (e com direito a furos). Azrael – se você não sabe quem é esse personagem, que chegou a substituir Batman quando o herói foi literalmente quebrado ao meio por Bane, sorte sua – entra em contato com o Homem-Morcego para fazer um alerta. Um vírus mortal, aparentemente desenvolvido em um laboratório da África, está a caminho de Gotham City.
Trata-se de uma variante do Ebola, conhecida como “vírus apocalipse” ou “esmagador”, pelo fato de ser 100% letal e levar à morte 48 horas depois de contraído. O vírus é transmitido pelo ar e o contagiado primeiro sente sintomas de uma gripe (e acaba transmitindo o vírus a outros, em especial por espirros e tosse… lembra alguma coisa?). Sem uma cura até aquele momento, a doença destrói os músculos e ossos do infectado, deformando a pessoa e a fazendo sangrar até pelos olhos.
Ironicamente, o sujeito que traz o “esmagador” para Gotham City é um ricaço que mora no mais exclusivo conjunto habitacional da cidade, o Babylon Towers, local que reúne residências luxuosas, centro comercial e todo tipo de mordomias. O tal sujeito, Palmoy Maris, tem informações sobre o vírus e o fato de ele estar chegando a Gotham…só não sabe que ele próprio já está contaminado e é justamente o vetor desta chegada.
Pelo contrário: Palmoy acha que pode salvar todos os demais bilionários e cair nas boas graças deles. Como as tais torres tem autonomia para se manterem fechadas com todo mundo dentro por um longo período, a ideia do tal sujeito é, adivinhem? Promover um isolamento social. Mas um isolamento bem peculiar, apenas entre os moradores bilionários enquanto as pessoas menos afortunadas – com o perdão do trocadilho – morrem do lado de fora. Afinal, eles não são coveiros…
Os moradores topam, mas nãos sabem que estão se isolando justamente com a doença entre eles. E, claro, Palmoy espirra sobre um dos empregados antes que ele saia das torres, já que a ricaiada dispensou os prestadores de serviço para não ter que dividir o alimento durante o lockdown. Ou seja, o vírus já está tanto dentro das torres como nas ruas da cidade.
Enquanto isso, Batman resolve ir até uma instalação do exército onde descobre que o mesmo vírus estava sendo pesquisado (ou desenvolvido) secretamente. E é aí que se inicia o maior furo do roteiro. Para entrar onde está pesquisador, que já se encontra em estágio final da doença, Batman coloca um traje anticontaminação completo, daqueles que cobrem todo o corpo, com máscara, luvas, tudo o que tem direito. Afinal, se trata de um vírus transmitido pelo ar. Mas assim que sai da sala o morcego tira o traje e já fica sem proteção ainda dentro do laboratório, quando se encontra com outros cientistas devidamente trajados.
A única explicação para isso talvez seja o fato que dentro do traje de proteção os desenhistas da época ficavam impedidos de mostrar a “capa rasgada mutante” que gostavam de desenhar para o Batman na época, num estilo que lembrava muito Venon, inimigo do Homem-Aranha. Ou as “orelhas” ridiculamente longas que faziam no traje (e nem vamos citar as luvas…)
Acontece que a partir dali e em todo o resto da história nem o herói qualquer outro personagem que não seja um médico ou cientista usa proteção contra o vírus. Recapitulando: o “maior detetive do mundo” sabe que está enfrentando um vírus mortal transmitido pelo ar e até se protege quando vai investigar o dito cujo pela primeiríssima vez, mas na sequência simplesmente ignora o fato.
E, antes que alguém aponte que “Batman e aliados usam filtros nasais” em algumas histórias para se proteger de gases venenosos, esporos da Hera Venenosa e outros perigos transmitidos pelo ar, nesta história ninguém se protege. Tanto que, mais para frente, Robin (Tim Drake) é contaminado e fica às beiras da morte.
Simplesmente não dá pra entender como o (bom) argumentista Alan Grant tem noções claras de isolamento social e uso de proteção facial contra um vírus, mas prefere fazer os heróis, que diferentemente dos cidadãos gothamitas sabem com o que estão lidando, ignorarem o fato.
O foco da HQ a partir de então passa a ser os esforços para se encontrar um sobrevivente do “esmagador” e tentar desenvolver uma vacina a partir dele. Os aliados do morcegão – entre os quais Robin, Azrael e até Mulher-Gato com uniforme especial para neve – dão uma força.
Em paralelo, os cidadãos de Gotham vão morrendo a torto e à direito e a cidade mergulha no caos, ampliado ainda mais pela ação oportunista de vilões como Pinguim e Hera Venenosa. Até mesmo o cínico anti-herói Hitman faz uma participação especial em um dos quatro capítulos/gibis nos quais a aventura foi distribuída no Brasil (na época, em “formatinho”, pela Editora Abril).
No fim tudo dá certo, a cura é encontrada e quem sobrevive passa a valorizar mais a vida (pelo menos até o dia seguinte, como enfatiza a própria HQ). E a Ordem de São Dumas, aquela seita estranha de onde surgiu Azrael, é apontada como a responsável por ter desenvolvido e espalhado o vírus.
Mas os leitores acham (também isso) meio forçado, com cara de que a ideia original não era bem essa. Afinal, destruir populações inteiras pelos mais variados meios e mirar sempre no Homem-Morcego é a marca registrada do vilão Ras Al Ghul…
De fato, logo na sequência se inicia uma nova série em quatro capítulos/gibis, O Legado do Demônio, no qual é revelado que o conhecido genocida estava por trás dos eventos anteriores.
A partir daí o roteiro é previsível e uma versão ampliada da série anterior, já que – uma vez eu o test drive do vírus deu certo em Gotham – o vilão agora quer levar o vírus a quatro grandes capitais internacionais e gerar uma pandemia, dizimando a população mundial ao máximo.
Batman e aliados (Asa Noturna reforça os mocinhos) vão tentar deter a disseminação do vírus e mais vilões aparecem – inclusive Bane, retornando às HQs pela primeira vez desde a série A Queda do Morcego.
Robin é reinfectado, quase morre de novo e outros não têm a mesma sorte, com direito a um momento apelativo na qual o menino-prodígio não consegue salvar uma criança moribunda.
No fim tudo dá razoavelmente certo… e mais uma vez ninguém usou máscara enquanto combateu um vírus que se propaga pelo ar! Pois é, ainda bem que os super-heróis não tiveram que lidar com a Covid-19. Ou tiveram?
Pinguim e Mulher Gato vacinam todo mundo
Apesar de na vida real tanto a DC quanto a Marvel terem sofrido diretamente com a Covid – houve morte de quadrinistas (como o brasileiro Robson Rocha, que há cinco anos era artista exclusivo da DC), queda de vendas e atrasos de produção e até mesmo o filme The Batman teve gravações adiadas porque o ator Robert Pattinson foi contaminado e ficou de molho – na maioria absoluta das HQs de super-herói lançadas em tempo de pandemia a tragédia que acontecia no mundo “de verdade” foi ignorada.
Pelo menos até o surgimento da vacina, quando apareceram algumas exceções. É o caso da HQ Bird Cat Love, publicada em uma antologia dos vilões do Homem-Morcego lançada pela DC Comics em 2021, ainda em homenagem aos 80 anos do Batman completados em 2019. Com desenhos de Dan Mora e argumento do ator Danny Devito, que interpretou o criminoso Pinguim em Batman Returns (1992) e disse ter sonhado com a história, a aventura é – pra dizer o mínimo – pouco ortodoxa.
Na história, Pinguim e Mulher Gato são totalmente apaixonados um pelo outro e, diante da recusa de muita gente em tomar a vacina contra a Covid-19, armam um plano com uma medida que muitos talvez considerem drástica: vacinar todo mundo à força.
Para isso, os dois descobrem uma forma de espalhar a vacina pelo ar e inocular toda a população mundial.
A “família morcego” basicamente faz figuração na história, inclusive no quadrinho final no qual todos os bat-heróis estão reunidos na caverna enquanto Bruce Wayne lê uma manchete de jornal intitulada “Ave e gata eliminam vírus” e comenta: “Eles estão estranhamente quietos desde de que inocularam o planeta e acabaram com a pandemia.”
Dos lados da Marvel também houve silêncio total sobre a Covid nos gibis lançados antes da vacina. Até que a editora publicou em parceria com a Pfizer, em 2022, a HQ “Avengers: Everyday Heroes”. Nela, os Vingadores combatem Ultron enquanto um grupo de pessoas aguarda para ser vacinado e um avô faz para a família uma inteligente analogia entre a Covid-19 e Ultron, bem como a vacina e os Vingadores.
E, basicamente, foi isso. Se no Brasil a pandemia inclusive gerou quadrinhos maravilhosos, como a série Confinada (de Leandro Assis e Triscila Oliveira), entre os super-heróis estadunidenses a ordem foi ignorar a desgraça como um todo até que ela começasse a ser resolvida.
O que, de certa forma, faz sentido: se uma pandemia começasse a matar gente aos milhões nos gibis, seria bem difícil justificar a existência de super-heróis que não poderiam fazer absolutamente nada a respeito.
E que ainda poderiam se contaminar e contaminar os outros, afinal, conforme amplamente exemplificado por Batman no final dos anos de 1990, super-herói não sabe usar máscara nem consegue ficar isolado…
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