Ziraldo: “Zi” de Zizinha, “raldo” de Geraldo e um gênio que é só dele

Peço licença ao leitor para iniciar esse texto, como faço em alguns casos, com um pequeno depoimento pessoal. Conheci Ziraldo nos anos de 1990, em um Encontro Nacional dos Estudantes de Comunicação (Enecom), em Belo Horizonte. Eu tinha uns 19 anos e Ziraldo era a estrela de um debate no qual o outro sujeito insistia em tentar analisar e rotular sua obra por um viés ideológico bastante limitado, digno dos autores de Para Ler o Pato Donald. Quando a palavra foi passada a Ziraldo, todos esperavam que o mestre retrucasse com argumentos contundentes e indignados, mas Ziraldo foi Ziraldo e retrucou com a frase que conquistou o público (ou, pelo menos, me conquistou): “Você é muito chato, cara!”

A casa veio abaixo.

Incrivelmente, Ziraldo deixou a mesa pouco depois e ficou zanzando pelo ginásio onde o palco estava armado. Meu amigo Thébaz o chamou para perto da grade que nos impedia de entrar e ofereceu um copo de chopp. Ziraldo, malandramente, abriu o casaco e mostrou uma garrafinha prateada na qual trazia um bom scotch e agradeceu: “Obrigado, mas trouxe o meu”. Todos rimos e iniciamos uma conversa que pode ter durado alguns minutos ou algumas horas, difícil saber.

Assim, se a ideia é descrever Ziraldo Alves Pinto, mineiro de Caratinga nascido em 24 de outubro de 1932, os parágrafos acima resumem as principais qualidades do autor: genial, imprevisível, simples e sempre pronto para uma boa conversa (como pude constatar em outras que tive com ele posteriormente, já como jornalista formado).

Ziraldo é um cartunista diferente já no nome de batismo, duplamente graças aos pais: não só eles o escolheram como o criaram, misturando os deles mesmos. O “Zi” veio da mãe, dona Zizinha, e o “raldo” do pai, seu Geraldo.

O criador do Pererê passou a infância na cidade natal, boa parte dela ao lado do irmão seis anos mais novo, Zélio Alves Pinto (que se tornaria também desenhista, cartunista, escritor e jornalista). Desde pequeno adorava desenhar e, aos seis anos, teve o primeiro desenho publicado, na Folha de Minas.

Deixou Caratinga ainda criança para estudar dois anos no Rio de Janeiro, mas voltou para concluir o ensino médio. Formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas em 1957, mas iniciou a carreira de cartunista mais a sério antes de se graduar.

Em 1954 começou a escrever uma coluna dedicada ao humor na Folha de Minas (em BH). Em 1957 ganhou reconhecimento nacional na revista O Cruzeiro, que circulava em todo o País: foi nas páginas da publicação que apareceram, em 1959, os primeiros cartuns de A Turma do Pererê.

Em 1960, por sinal, Ziraldo lançou o gibi A Turma do Pererê.  Foi a primeira revista de histórias em quadrinhos brasileira feita por um só autor e totalmente colorida. Com mensagens ecológicas e um universo misturando folclore e animais brasileiros com muito bom humor, a revista durou até 1964.  A trupe ainda voltaria a cena das HQs de 1975 a 1976, pela Editora Abril, e a Globo lançou duas edições especiais em 2007 (A Turma do Pererê – Coisas do coração e A Turma do Pererê – As manias do Tininim).

 

De volta a Ziraldo, em 1963 – um ano antes do fim do primeiro gibi) ele se transferiu para o Jornal do Brasil. São deste período personagens antológicos como Geremias, o bom, Supermãe e Mineirinho, o Come-Quieto.

E se em 1964 A Turma do Pererê parou, naquele mesmo ano – em plena Ditadura Militar –  o autor deu início a outro projeto importante: junto com outros humoristas (entre os quais o irmão Zélio) fundou o jornal O Pasquim, que combatia o autoritarismo do regime com humor crítico e inteligente.

 

Em 1969, Ziraldo publicou o primeiro livro infantil, FLICTS. A história sobre uma cor diferente, que não encontrava lugar no arco-íris, conquistou fãs em todo o mundo.

A partir de 1979, Ziraldo concentrou-se na produção de livros para crianças e, em 1980, lançou O Menino Maluquinho.

Um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos no Brasil – quando completou 30 anos (em 2010) o livro original de Maluquinho registrava a marca de 2,5 milhões de cópias comercializadas – , a obra foi adaptada com grande sucesso para teatro, quadrinhos, desenho animado,  ópera infantil, videogame, cinema e outras mídias.

Em 1999, Ziraldo novamente surpreendeu com humor e ousadia ao lançar a revista Bundas. Com colaboradores como os colegas de Pasquim Millôr e Jaguar, a publicação ironizava a revista dos famosos, Caras, e trazia tiradas impagáveis. A revista durou apenas um ano, em virtude de problemas financeiros. Um ano inesquecível.

 

 

Em 2003, Ziraldo foi tema de escola de samba pela Nenê de Vila Matilde. Em 2008, foi indenizado em mais de R$ 1 milhão pelo governo federal ao vencer processo de anistia, além de receber uma pensão vitalícia na casa dos R$ 4 mil. Foi criticado por colegas como Millôr, que se recusou a receber anistia dizendo: “Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?”

Respondeu na mesma moeda: “Eu quero que morra quem está me criticando. porque é tudo cagão e não botou o dedo na seringa. Enquanto eu estava xingando o Figueiredo e fazendo charge contra todo mundo, eles estavam servindo à ditadura e tomando cafezinho com o Golbery. Então, qualquer crítica que se fizer em relação ao que está acontecendo conosco eu estou me lixando.”

Em 2010, Ziraldo deu início a uma exposição em telas dos Zeróis, brilhante sátira aos super-heróis americanos que criou também na década de 60. “Não sou um filho de Monteiro Lobato, sou filho de Batman, Dick Tracy, Super-Homem, Mulher Maravilha…”

 

Terminado o extenso lado relatorial e deixando de fora inúmeros prêmios conquistados e trabalhos publicados nos Estados Unidos e Europa, o último contato que tive com Ziraldo foi indireto. Em 2010, uma amiga e ex-aluna esteve na Bienal do Livro de São Paulo e contou que riu muito ao ver Ziraldo confessar, em uma palestra para crianças, que durante muito tempo teve sonhos eróticos e ainda alimentava uma tara pela Sininho, a fadinha de Peter Pan. Mais uma vez, era Ziraldo sendo Ziraldo.

O pai de Pererê, Maluquinho e tantos outros nos deixou em 6 de abril de 2024, aos 91 anos. Morreu em casa, enquanto dormia.

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

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