Em 1º de março de 2024 o mundo perdeu Akira Toriyama, conhecido em todo o planeta por ter criado o mangá Dragon Ball (que viraria animê, videogames, filmes, brinquedos e inúmeros outros produtos). A morte do mestre mangaká só foi conhecida uma semana depois, no dia 8, quando ocorreu o anúncio oficial feito pelo Bird Studio: Toriyama, que estava com 68 anos, foi vítima de um hematoma subdural agudo (um acúmulo de sangue entre o crânio e o cérebro).
A morte impactou profundamente não só os fãs como outros artistas do gênero, como o autor de Naruto, Masashi Kishimoto, que divulgou carta aberta emocionada na qual elogiou Toriyama, a quem chama de “professor” e “deus do mangá”, e disse ainda não saber “como lidar com esse buraco no meu coração.”
Toriyama talvez não seja o maior artista de Histórias em Quadrinhos japoneses da história (título atribuído normalmente a Osamu Tesuka, outro criador de mangás e animês com trabalhos reconhecidos no mundo inteiro), mas não é exagero dizer que foi um deus dos mangás (é assim que são chamadas, caso você não saiba, as HQs japonesas). Afinal, Dragon Ball foi responsável por popularizar o gênero em todo o globo a partir dos anos de 1980.
Não custa lembrar, inclusive, que foi o primeiro mangá lançado no Brasil (no ano 2000, pela Conrad Editora) no formato de leitura original japonês, “de trás pra frente” em relação aos quadrinhos ocidentais. O primeiro mangá no formato ocidental chegou bem antes, em 1988 (o clássico Lobo Solitário, de Kazuo Koike).
Dragon Ball, contudo, não foi o primeiro sucesso de Toriyama no mundo dos quadrinhos. Aliás, vale lembrar que a relação do autor com o mundo dos desenhos, balões e onomatopeias começou na infância, bem antes de criar Goku e companhia limitada.
A Infância
Nascido em 5 de abril de 1955, em Kiyosu, Toriyama começou a desenhar ainda criança, especialmente animais e veículos, duas paixões do garoto. O amor por estes últimos, por sinal, o acompanhou por toda a vida – o desenhista era fã do piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna, com quem chegou a se encontrar pessoalmente, além de ter desenhado diversos personagens e cenas com a MacLaren usada pelo brasileiro.
Dois momentos, contava, foram cruciais para que decidisse seguir em meio aos desenhos. O primeiro foi assistir à animação Os Cento e Um Dálmatas, lançada pelos estúdios Disney em 1961. Toriyama contava ter “mergulhado a fundo” no desenho e decidido ali que queria aprender a desenhar tão bem quanto o que viu na telona.
O segundo foi o contato com o mangá, que ocorreu por meio da coleção do irmão mais velho de um colega de escola. E que contato: de cara ele se deparou com Astroboy, um dos sucessos de Osamu Tezuka, publicado de 1952 a 1968. As aventuras do robô em forma de menino, notoriamente o primeiro quadrinho a virar desenho animado no Japão, foram a porta de entrada de Toriyama tanto para o mundo dos mangás quanto dos animes.
Assim, quando pequeno, Toriyama lia bastante e, junto com amigos, criava as próprias HQs e personagens. Durante o ensino médio – que fez focado em design criativo – deixou um pouco de lado a leitura (na verdade, trocou por séries de TV como Ultraman, Gamera e outros live action com monstros). Porém, continuou desenhando. Após a escola, o autor trabalhou três anos em uma agência de publicidade, em Nagóia, criando posteres diversos.
Dr. Slump
Após deixar a agência, aos 23 anos. Akira Toryama resolveu tentar a sorte com mangás. Ele inscreveu um trabalho para um concurso de novos talentos da revista Weekly Shonen Jump, porém foi desclassificado porque a HQ não era uma história original e, sim, uma paródia de Star Wars.
Contudo o editor que avaliou o trabalho, Kazuhiro Torishima, gostou do que viu e mandou um telegrama ao rapaz, incentivando-o a continua fazendo e mandando as próprias histórias para a revista. Com isso, tempos depois Toriyama publicaria a primeira HQ na Shonen Jump: Wonder Island.
A HQ flopou, ficou em último lugar na avaliação dos leitores, o que não impediu o autor de lançar Wonder Island 2 no mesmo ano de 1978. No ano seguinte, Toriyama criou Tomato the Cutesy Gumshoe. A história protagonizada pela jovem detetive Akai Tomato, que assim como as anteriores seguia uma linha de humor, teve um sucesso relativo e incentivou o autor a criar uma nova história com uma heroína.
Foi assim que em 1980 surgiu o primeiro grande sucesso de Akira Toriyama: Dr. Slump. A protagonista desta vez é Arale, uma menina androide extremamente forte criada pelo cientista Senbei Norimaki. Genial e meio tarado, Senbei é capaz de criar tanto invenções maravilhosas quanto outras absurdamente ridículas.
Os dois vivem na Vila Pinguim, que Toriyama povoou com inúmeros personagens estranhos e divertidos, que incluem não só humanos e robôs como animais e objetos antropomórficos, extraterrestres, deuses e paródias de figuras históricas, lendas e filmes diversos. Entre eles está, por exemplo, Suppaman, uma caricatura do Superman que já havia aparecido rapidamente em Tomato e que, diferentemente do original, não tem nem superpoderes nem qualquer noção de justiça. Aliás, não tem noção de coisa nenhuma.
Dr. Slump foi originalmente publicado de 1980 a 1984, virou anime e deu a Toriyama os primeiros – de muitos prêmios – na área. Para se ter uma ideia do sucesso da HQ, com lançamentos e relançamentos ao longo dos anos, só no Japão foram vendidos, até 2008, 35 milhões de exemplares da revista.
Em paralelo, o autor também seguia lançando outras histórias, como Pola & Roid (1981), Mad Matic (1982), Pink (1982), Chobit e Chibit 2 (1983), e Dragon Boy (1983). Este último chamou bastante atenção e é considerado por muitos um protótipo de Dragon Ball.
Também no início dos anos de 1980 ele criou o próprio estúdio de arte, que batizou de “Bird Studios” brincando com o fato de que parte de seu sobrenome, “tori”, significa pássaro, ou “bird” em inglês.
Por sinal, outra brincadeira que Toriyama fazia consigo mesmo era se desenhar como uma criaturazinha baixa com mãos mecânicas e uma espécie de máscara antigás (que ele chamava de Robotoriyama). Avesso a fotos, o autor se retratava como o robozinho sempre que podia.
É desta forma que ele protagoniza, por exemplo, o livro Mangaka – lições de Akira Toriyama. Na obra, lançada em 1984 no Japão e em 2002 no Brasil, Toriyama dá várias dicas de desenho, criação de roteiros e personagens para histórias em quadrinhos.
Dragon Ball
O mangá mais conhecido de Toriyama surgiu em 1984, também nas páginas de Shonen Jump. Entre as fontes de inspiração de inspiração para o personagem principal Son Goku estava a tradicional lenda chinesa do Rei Macaco, que se locomovia sobre uma nuvem e tinha um bastão mágico. Também há na história um dragão chinês que concede desejos a quem juntar sete esferas douradas contendo um diferente número de estrelas vermelhas dentro delas, as esferas do dragão, ou Dragon Ball.
Com um roteiro inteligente e divertido, Toriyama começa contando a história do garoto criado por um velhinho que morreu e que a partir de certo ponto cresceu sozinho e não sabe nada da cidade. Com força fora do comum e uma ingenuidade tão grande quanto o coração enorme, Goku se une à garota Bulma em busca das demais esferas -ele já tem uma, que era do “avozinho” – e acaba indo aprender artes marciais com um professor nada convencional, o tarado mestre Kame, tendo a seu lado o ex-monge Kulilin.
Com muito bom humor, a história vai misturando aprendizado, esforço e muitas lutas do(s) personagem(s) em busca do título de maior campeão de artes marciais do mundo. E revelações que vão gerar outros diversos plots, como o fato de ser revelado que Goku é, na verdade, um alienígena.
Nos mangás, a primeira fase termina com a consagração de Goku e, na sequência, se inicia Dragon Ball Z (ou simplesmente DBZ), no qual os personagens são jovens adultos, Goku tem filhos, aparecem desafios literalmente de outro(s) planeta(s). Tudo mais uma vez com roteiro bem amarrado e muito humor, lutas cada vez mais elaboradas e inimigos cada vez mais fortes, que obrigam os heróis a se superarem por meio de muito treino e de uniões muitas vezes imprevisíveis.
Nesta fase, os leitores ficam sabendo que o povo de Goku, os Saiyajin, consegue “se transformar” em versões cada vez mais fortes de si mesmos, os Super Sayajin, por meio de treinos e lutas nas quais quase morrem. E por falar em “uniões imprevisíveis”, elas também ocorrem de maneira literal quando alguns personagens conseguem se mesclar entre si, em um processo de fusão.
Originalmente, a saga de Dragon Ball em mangá foi publicada durante 11 anos, de 1984 a 1995, em 519 capítulos – inicialmente de maneira seriada dentro da revista Shonen Jump, que no ano final da série chegou a registrar o recorde de 6,5 milhões de cópias de um dos exemplares.
Depois as aventuras foram lançadas em revistas únicas do personagem, em um total de 42, que venderam aproximadamente 160 milhões de cópias no Japão. Aqui, no Brasil, os mangás inicialmente lançados pela Conrad tiveram um total de 83 edições (32 de Dragon Ball e 51 de DBZ). A editora lançaria posteriormente uma nova coleção, chamada de “Dragon Ball – Edição Definitiva”, com um número menor de edições (42, como a versão japonesa), já que os gibis eram mais grossos. E, diferentemente da primeira versão, inteira em branco e preto, esta tinha miolo colorido,
Obviamente Dragon Ball também virou anime. Foram cinco diferentes adaptações, dando conta não só dos mangás como incluindo séries que originalmente não pertenciam ao universo dos quadrinhos, como Dragon Ball GT e Dragon Ball Super.
Os últimos lançados foram Dragon Ball Super: Super Hero, em 2022, e Dragon Ball Daima, que teve 20 episódios e estreou após a morte do autor, em 2024 – Akira Toriyama, porém, criou a história e design dos personagens da série.
Dragon Ball também virou brinquedos e diversos outros produtos de merchandising, mais de 20 filmes em animação, oito filmes live action produzidos em diferentes países (entre os quais o infeliz Dragon Ball Evolution, de origem estadunidense) e mais de uma centena de videogames para as mais diversas plataformas.
Dragon Ball ganhou até um dia para chamar de seu. Ou melhor, o personagem principal da série ganhou. No Japão, 9 de maio é o Dia do Goku. Isso porque quando se escreve “5/9” em japonês (no caso, primeiro vem o mês e depois o dia), a pronúncia do mês (5) e do dia (9) podem ser lidas como “Go” e “Ku”.
Designer de personagens para videogames
Em 1985, quando Dragon Ball estava no primeiro ano de vida, Akira Toriyama foi convidado para ser o designer de personagens do game Dragon Quest, que ganhou inúmeras versões ao longo dos anos.
Em 1995, Toryiama criou os personagens de Chrono Trigger, apontado até hoje como um dos melhores jogos de RPG já lançados. Em 1998, surgiria Dragon Quest Monsters (DQM), spin-off de Dragon Quest que também teve várias versões lançadas. Uma das mais recentes, Dragon Quest Monsters Dark Prince, saiu em 2023 para Nintendo Switch.
Vida pós Dragon Ball
Depois de finalizado o mangá Dragon Ball, Akira Toriyama ainda produziu diversos outros títulos. É o caso de one shots (histórias únicas varando de 100 a 200 páginas) como Cowa! (1997-1998), Kajika (1998), Sand Land (2000) e Cross Epoch, um crossover de Dragon Ball e One Piece feito em parceria com o autor deste último, em 2006.
Ele fez ainda uma HQs de caráter mais institucional: Delicious Island’s Mr. U, produzida gratuitamente para auxiliar uma organização não-governamental que prega a valorização da agricultura e a consciência ambiental (2009), Por fim, participou de uma edição especial da Shonen Jump com a história Kintoki, em 2010 – no ano seguinte, ajudaria a revista a produzir um vídeo em apoio a vítimas de terremoto e tsunami.
Fora dos mangás, em 2005 ele desenvolveu o design de um carro elétrico batizado de QVolt, para a empresa CQ Motors. Com autonomia de 80 quilômetros, espaço apenas para um condutor e velocidade máxima de 30 quilômetros por hora, o carro parecia mais um divertido teste do que um veículo de verdade. Apenas nove unidades, a um preço equivalente a R$ 67 mil cada, foram vendidas.
Em 2006, ele desenvolveu personagens para um novo videogame, Blue Dragon (para Xbox), que também viraria animação. Por fim, até o fim da vida ele continuou se envolvendo com a criação e produção de todos os animss de Dragon Ball que, diferentemente do mangá, nunca pararam.
Vale citar ainda que em 2024 o mangaká criou um logotipo especial para celebrar o 20º aniversário da cidade natal dele, Kiyosu, que ocorrerá em 2025 – quando Toriyama nasceu o local ainda era uma vila com o mesmo nome. Em 1º de julho de 2005, ela foi unificada com outros dois vilarejos, Shinkawa e Nishibiwajima, tornando-se oficialmente a cidade de Kiyosu.
Homenagens até no futebol
Akira Toriyama deixou a esposa, Yoshimi Katō – que também era uma artista de mangá – e os filhos Sasuke e Kikka. O governo japonês soltou nota oficial de pesar em relação ao passamento do autor, destacando a importância dele para espalhar a cultura japonesa do mundo.
Os ministros do exterior da China e El Salvador também emitiram notas lamentando a morte. Houve ainda pedidos de minuto de silêncio em diversos parlamentos de esferas federais, estaduais e municipais em inúmeros países. No Brasil foi o caso, por exemplo, da Câmara Municipal de Campinas, no Interior de São Paulo.
Diversos quadrinistas lamentaram o ocorrido, de mangakás como Eiichiro Oda (One Piece), Masashi Kishimoto (Naruto) e Masakazu Katsura (Videogirl Ai) a artistas de diversos outros países, como o brasileiro Maurício de Sousa.
E nas redes sociais, além de celebridades diversas e fãs de todo o planeta, chamou a atenção a manifestação de diversos clubes de futebol ao redor do mundo. Aqui no Brasil, por exemplo, Flamengo, Palmeiras e Grêmio-RS estão entre os que postaram homenagens.
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