Em 3 de janeiro de 2005 o mundo do desenho sofreu um abalo tão grande quanto o ocorrido com a morte de Walt Disney, em 1966. Para muitos, em especial os fãs de Histórias em Quadrinhos, até maior. Nesta data Will Eisner, o papa das HQs, o homem que mudou os conceitos da chamada nona arte e é apontado como o criador do viria a ser chamado de Graphic Novel, o criador do personagem chamado de Cidadão Kane das HQs, o Spirit, morreu em decorrência de complicações de uma cirurgia no coração.
E, se Disney foi bem mais popular que Eisner (graças ao império que montou com sua visão executiva e as centenas de desenhistas e animadores que lhe cediam créditos), Eisner deu contribuições muito mais profundas à arte do desenho, estático ou animado.
Nascido em 17 de março de 1917 em Nova York, filho de imigrantes judeus, William Erwin Eisner e se apaixonou por quadrinhos ainda menino. Vendia jornais em Wall Street e, sempre que podia, parava o trabalho para ler as tiras dos hoje clássicos Popeye, Krazy Kat, Steve Canyon, Flash Gordon e Jim das Selvas. Em 1936, aos 18 anos, publicou as primeiras histórias na revista WOW (Harry Karry e The Flame) e, um ano depois, fundou a própria empresa de quadrinhos tendo como sócio o editor da WOW, Jerry Iger.
Já no primeiro ano da Eisner & Igger – da qual era o único desenhista (Igger cuidava da área comercial) – o autor fazia cinco tiras diferentes, cada uma em um estilo.
Não assinava nenhuma, porém, como “Will Eisner”, em parte por causa do preconceito sofrido pelos judeus em Nova York, em parte por razões comerciais: Eisner e Igger queriam que as pessoas acreditassem que a empresa era grande e tinha diversos artistas contratados.
O primeiro personagem de sucesso veio já em 1937: Sheena, a Rainha das Selvas. Era, basicamente, uma versão feminina e loira de Tarzan, que Eisner publicava usando um dos vários pseudônimos que criou para assinar os quadrinhos que criava: William Thomas.
Foi em 1940, porém, que Will Eisner começou a se tornar conhecido internacionalmente com aquele que se tornou sua maior criação: The Spirit.
O personagem revolucionou os quadrinhos na forma e no conteúdo. Em seus desenhos, Eisner utilizou conceitos até então inéditos nas HQs: fusões, cortes, ângulos insólitos e uso de sombras. Era um mestre do branco e preto, criando noções de profundidade e claro e escuro com maestria. “Eisner é o melhor. Ele ainda é o melhor de todos nós”, dizia Frank Miller, autor cultuado pela série Sin City justamente pela utilização de preto e branco que faz nos desenhos da HQ e que, claro, é inspirada por Eisner.
The Spirit também era inovador no conteúdo: um detetive que usava máscara, mas não tinha superpoderes, em cujas histórias o personagem principal era o comportamento humano. Spirit, por vezes, sequer aparecia na HQ a não ser nos últimos quadrinhos, para fazer um comentário sarcástico/filosófico que resumia o espírito humano.
“É importante dizer que não fiz o Spirit para se transformar em super-herói. No Spirit, o que realmente contava era o espírito das pessoas na época e eu estava mais interessado em histórias curtas”, disse Eisner a este repórter em entrevista exclusiva publicada em novembro de 1996 pelo jornal Correio Popular, de Campinas.
Convocado para a II Guerra Mundial em 1942, Eisner foi solicitado pelo Pentágono para produzir histórias educativas aos soldados estadunidenses no front, bem como para ilustrar casos ouvidos e vistos no front. De volta da guerra, em 1945, o autor se interessou por estudar as HQs como ferramenta educativa e por utilizá-las desta forma. Indiretamente, isso causou o fim do Spirit no auge da popularidade do personagem, em 1952.
“Estava envolvido demais nas aplicações comerciais dos quadrinhos. Sempre acreditei que as HQs eram mais que diversão e na guerra eu entendi que elas poderiam ser uma ferramenta para ensinar. Continuei usando as HQs como ferramenta e (…) fiquei ocupado demais para fazer as duas coisas. Como estava mais interessado pela utilização da arte, larguei o Spirit”
O que com certeza foi motivo de decepção para os fãs da época, acabou gerando frutos de ainda maior magnitude que o Spirit. Entre eles, dois livros que são bibliografia obrigatória para quem quer entender ou fazer quadrinhos: Quadrinhos e Arte Seqüencial (1985) e Graphic Story Telling (1996). Também desenhou centenas de HQs educativas e várias autobiográficas, entre as quais No Coração da Tempestade e O Último Dia no Vietnã.
Criou, por meio de sua fundação, um prêmio que é concedido anualmente às mais inovadoras e mais brilhantes histórias em quadrinhos, o The Will Eisner Comic Industry Awards. O Eisner Awards, como é conhecido, é considerado ainda hoje a maior honraria e reconhecimento na área. E ainda encontrou tempo para escrever e desenhar várias Graphic Novels, ou Romances Gráficos, como ficaram conhecidas as histórias com enredo mais robusto, narrativas mais longas que “misturam elementos de arte gráfica e literatura.”
Uma delas, por exemplo, foi Avenida Dropsie, na qual contou a evolução de um bairro – sócio econômica e cultural – por meio das histórias que se desenvolvem em torno de uma avenida por mais de um século. A última que fez, The Plot (O Complô) foi lançada nos Estados Unidos no ano da morte de Eisner, e conta a história da fabricação dos Protocolos de Sion, uma farsa que se tornou uma das mais duradouras e cruéis peças de literatura antissemita já produzidas.
Vale lembrar ainda que anualmente, ao redor do mundo, são realizadas em março (mês de nascimento do desenhista) as chamadas Will Eisner Week – em Campinas (SP),em 2025 a tradição até mesmo foi ampliada para durar um mês inteiro em atividades na Biblioteca Pública Municipal “Professor Ernesto Manoel Zink.”
Uma homenagem mais que merecida a um ilustrador fantástico, autor revolucionário, roteirista, artista visionário, educador apaixonado… Muitos são os rótulos dados a Will Eisner, ainda que nenhum faça jus a magnitude de um homem cuja maior obra foi, provavelmente, ele mesmo.
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