“Viver é desenhar sem borracha”, dizia Millôr Fernandes. E poucos desenharam uma vida como a dele. Quando morreu, na noite de 27 de março de 2012, aos 88 anos, Millôr já tinha sido e ainda era escritor, jornalista, chargista, tradutor (de Shakespeare, Brecht e Molière), dramaturgo, ilustrador, frasista, contista, autor multimídia e muito mais. Um homem que fez questão de viver e valorizar a vida ao máximo, afinal, como ele mesmo dizia em outra de suas frases bem conhecidas, “a gente só morre uma vez, mas é pra sempre”.
Apesar de multifacetado, Millôr era acima de tudo um chargista, mas tão genial que nem sempre precisava da charge para se expressar: Millôr transcendia o traço. A crítica social bem humorada e demolidora do homem que só aos 17 anos descobriu que não se chamava Milton e sim Millôr (graças a erro ou acerto do pai e do cartório, não se sabe bem ao certo) podia ganhar forma tanto no desenho quanto nas letras, tanto na ilustração quanto em frases, contos, crônicas e artigos. A contundência era sempre a mesma.
Foi publicado em grandes revistas do país, do extinto O Cruzeiro (onde estreou com 14 anos) à Veja, mas também foi um dos principais homens do Pasquim e criador do alternativo Pif-Paf. Millôr fez tanto, produziu com tamanha qualidade, que destacar qualquer um de seus trabalhos seria uma injustiça com o autor. Como disse o humorista Hélio de la Peña (Casseta&Planeta) ao comentar o passamento, “qualquer humorista que diga que não foi influenciado por Millôr está mentindo”.
Por falar em mentira, Millôr costumava dizer que “todo homem nasce original e morre plágio”, mas essa frase nunca se aplicaria a ele, difícil seria achar alguém mais original. Até mesmo no nascimento foi diferente: nasceu em um ano, foi registrado no seguinte e comemorava o fato de ser mais moço “na carteira”.
Sem nunca ter parado de produzir, em 2010 Millôr sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). No ano seguinte, foi internado duas vezes na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro, e sua saúde permaneceu debilitada. Na noite de 27 de março de 2012, faleceu em casa, vítima de uma parada cardíaca e falência múltipla dos órgãos. Foi velado no Memorial do Carmo, no Caju, zona portuária do Rio, com a presença de muitos amigos (o corpo foi cremado).
Muitas frases de impacto, de gente famosa, foram ditas referindo-se a ele, um dos maiores frasistas brasileiros . “Era um homem livre, não era ligado a religião, não tinha partido político, era muito culto e engraçado. Me apoiou publicamente quando era politicamente incorreto me apoiar”, disse a atriz Marília Pera.
“’Ele dizia que era um homem atrás de seu tempo, não estava gostando muito de como a humanidade estava caminhando e preferia ficar atrás, apontando os erros. Todos os grandes frasistas europeus batidos no liquidificador não dão meio copo de Millôr. Não tinha um dia que uma frase do Millôr não servisse para explicar e iluminar uma conversa sobre alguma coisa obscura que estava acontecendo no Brasil e no mundo”, afirmou o escritor Ruy Castro.
Mauricio de Sousa, autor da Turma da Mônica, contou que conheceu Millôr antes de ele ser Millôr Fernandes. “Assinava Van Gogo, na revista ‘O Cruzeiro’. Eu me alimentava com as tiradas geniais, algumas que, por ser muito jovem, nem entendia. Era um humor atilado, sofisticado. Com o tempo, fui perdendo o Van Gogo e conhecendo a majestade do humor de Millôr. Nos últimos anos, acompanhei como e quando pude, aquela visão de mundo que ele nos passava. E aqui e ali, com críticas super-inteligentes, deixa um legado para a eternidade.”
“É realmente uma perda. A perda de um gênio. É uma perda para o jornalismo, para o teatro, para a literatura, porque o Millôr fazia tudo”, afirmou o escritor Zuenir Ventura. O filho de Millôr, Ivan Fernandes, também citou uma lição deixada pelo pai, que permeou toda a carreira do gênio: ‘Você jamais deve usar o humor para humilhar. O humor pode ser uma arma de ataque muito forte, mas jamais use para humilhar alguém.”
Confira abaixo a biografia de Millôr pelo próprio Millôr, extraída de seu site oficial
1924
Nascido Milton Fernandes, no Meyer, em 16 de agosto. Ou em 27 de maio? Ou em 27 de maio do ano anterior? Há desencontros de opinião na família. Na carteira de identidade: 27-05-1924. Meu amigo, Frederico Chateaubriand, sempre repetia, quando se falava que alguém estava “muito moço”, isto é, aparentava menos que a idade que tinha: “Idade é a da carteira”. Isto é, não adianta ter qualquer esperança contra a cronologia. No meu caso talvez a carteira esteja (um pouquinho) a meu favor.
1925
Morto meu pai. Nessa idade a orfandade passa impressentida. Mas a família – mãe com quatro filhos – cai de nível imediatamente.
1931
Entrada para a Escola Enes de Sousa, no mesmo Meyer, educandário dirigido por Isabel Mendes, mestra extraordinária que mais tarde receberia a homenagem de ter o colégio batizado com o seu nome. Enes de Sousa, só fui saber quem era muitos anos mais tarde, nas memórias de Pedro Navas. Um abolicionista, se é que isso existe.
1934
Morta minha mãe. Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença.
1934 a 1937
O período dickensiano, vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito. A família dispersa, os quatro irmãos cada qual pro seu lado, tentando sobreviver.
1938
15 de março: início da profissão de jornalista.
1938 a 1942
Liceu de Artes e Ofícios, onde um dia um professor deteve a massa dos alunos que desciam as enormes escadarias e, no meio de todo mundo, advertiu-me para que eu nunca mais zombasse de um colega. “As pessoas podem perdoar que você bata a sua carteira mas jamais perdoarão isso.” Aprendi.
1941
Descubro, aos 17 anos, que não me chamo Milton, mas Millôr. Acho bom, não mudo, e o nome logo ‘pega’.
1943
Começam os anos gloriosos da revista ‘O Cruzeiro’, que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000.
1944
Com tio Viola, chefe da gráfica ‘O Cruzeiro’, responsável por minha entrada no jornalismo. Viola, nome da família pelo lado italiano, teve recentemente uma possibilidade de glória. Eu vi o Papa João Paulo I dizer na televisão: “Todos os Violas do Brasil são meus primos.” Mas morreu logo depois.
1946
A vida era bela e não sabíamos. Ou sabíamos? Aqui, Péricles Maranhão, autor da figura mais popular no humor brasileiro de todos os tempos: ‘O Amigo da Onça’. Canhestramente faço o ‘amigo’ da foto.
1948
Na foto com Walt Disney, no estúdio dele, em Hollywood. Foto cuidadosamente posada. Nessa época eu ainda acreditava que Disney sabia desenhar. Só mais tarde, lendo sua biografia, aprendi que até aquela assinatura bacana com que ele autentica os desenhos é criação da equipe.
1949
Comecei a programar viagens fora do país. Primeiro em países da América do Sul, depois Estados Unidos. Deixei a Europa pro fim. Ainda era um acontecimento, viajar.
1950
O sucesso de ‘O Cruzeiro’ faz os jornalistas virarem notícia. Na redação, entrevista para o rádio, uma espécie de televisão da época, muito melhor, porque sem imagem.
1951
Viajo bastante pelo Brasil, coisa que sempre gostei de fazer, mas de carro, única forma de sentir as tremendas distâncias.
1952
Faço questão que o ministro brasileiro me batize nas águas do Rio Jordão, em Israel. Cada um tem o São João Batista que merece.
1953
Vice-campeão mundial de pesca ao atum na Nova Escócia. Nunca tinha pescado em minha vida e nunca peguei um peixe. Uma longa história que não cabe aqui.
1954
Compramos por Cr$ 2.700 um apartamento no Rio, num lugar mais ou menos distante, chamado Vieira Souto. Quando a granfinada soube, correu atrás de mim e o lugar virou ‘status’, o metro quadrado mais caro do mundo. Hoje a portaria da minha casa é o centro de prostituição – na sua quase totalidade exercida por travestis – da cidade. E de qualquer maneira a janela do meu apartamento, no quarto andar, é o local ideal para um sociólogo amador.
1955
Cobertura jornalística de campanha eleitoral. Aí conheci um jovem e engraçado político chamado Jânio e um homem esquisitamente ético chamado Milton Campos. Glória das glórias: ganho o primeiro lugar num concurso de desenhos em Buenos Aires, junto com Steinberg.
1956
Festival de Cannes, casamento de Grace Kelly. Este acontecimento até hoje rende mentiras por parte de muitos jornalistas. Guardo as minhas para momentos insípidos de conversação.
1957
Primeira exposição de desenhos no Museu de Arte Moderna, naquela época uma sala em baixo do Ministério da Educação. Melhor cenógrafo do ano. Por quê?
1958
Um ano ou dois antes, não estou certo, nosso grupo implantava o frescobol em Ipanema. Me lembro que antes apareceu uma besteira chamada ‘la pelote basque sans fronton’. Eu me auto-proclamei campeão do frescobol do posto 9. Mantive o título por muito tempo: quando alguém jogava melhor do que eu, eu dizia que ele era do posto 8.
1960
Minha peça ‘Um elefante no caos’ estréia depois de uma briga enorme com a censura, transformada num excelente espetáculo pela genial direção de João Bittencourt. Uma das poucas vezes que um diretor melhorou um trabalho meu.
1961
Exposição de desenhos na Petite Galerie. Viagem ao Egito. Voltamos correndo com a renúncia de Jânio.
1963
Uma “questão religiosa” me coloca em conflito com a tradicional ‘ética’ dos ‘Diários Associados’. Num discurso público, declaro: me sinto como um navio abandonando os ratos.
1964
Preparando o lançamento de ‘O PIF-PAF’, quinzenal que, em 1979, o serviço de informações do exército consideraria oficialmente como o início da imprensa alternativa no Brasil. Ainda bem, porque fecharam o jornal no oitavo número e eu fiquei devendo 21.000 cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais.
1965
“Liberdade, Liberdade”, com Flávio Rangel. Um barato no meio do caos. Depois a censura proíbe. Como proíbe também, na íntegra, “Este mundo é meu”, com Sérgio Ricardo.
1966
Cada vez me meto mais, profissionalmente, no teatro. Traduções, adaptações, originais. Representamos, no Largo do Boticário, a versão musical de “Memórias de um Sargento de Milícias”, só com atores negros.
1967
Topo fazer o ator ao lado de Elizeth Cardoso e o Zimbo Trio. Uma experiência inesquecível, que outras ocupações não me deixaram repetir.
1968
O período efervescente do Pasquim. Parecia até que o país existia e que certa socialização, confundida com uma fugida fraternidade, era possível.
1970
Sempre viajando pelo Brasil.
1971
A ‘parada’ com o sistema engrossa. Quase não publicamos nada inteligível e o teatro fica praticamente impossível.
1972
Volto a me interessar por livros. Lanço ao mesmo tempo “A Verdadeira História do Paraíso” e “Trinta anos de mim mesmo”, um resumo de anos de trabalho, numa noite de autógrafos denominada “Noite da Contra-incultura”.
1973
Promovido a cidadão mineiro, afinal, pela Câmara de Conceição-de-Mato-Dentro.
1975
Exposição na Graffiti. Fim da censura no ‘Pasquim’.
1976
Escrevo “É…”.
1977
Na foto eu tenho a rara oportunidade de dar alguns esclarecimentos políticos a Mário Lago.
1978
Um trabalho muito mais difícil do que podia parecer: a adaptação de “Deus lhe Pague”.
1979
Aos poucos, venho descobrindo mais o Rio Grande do Sul, onde só tinha estado há muito tempo. Vou me agauchando.
1986
Compro o primeiro computador, um XT a vapor, mesmo assim considerado por muitos uma extraordinária peça de ficção científica.
1988
Comemoração de 50 anos de jornalismo. 25 de março, na casa de Técio Lins e Silva e Regina Pimentel.
1996
Com Monique Duvernoy, Fernando Pedreira e Cora Ronai, em Auvers-sur-oise.
1997
Com Cora Ronai e Ocimar Versolato, jantando na casa de Monique Duvernoy e Fernando Pedreira.
2000
Lançamento do saite “Millôr Online”, com festa no Copacabana Palace, Rio.
Comentar