Talvez a maioria das pessoas lembre de uma novela da Globo ou da própria via de trânsito – seja no Rio de Janeiro ou na própria cidade natal – quando se depara com o nome “Avenida Brasil.” Mas, sem desfazer das outras alternativas, a melhor Avenida Brasil é feita de tinta, papel, caricaturas excelentes e crítica política de primeira linha. E foi criada pelo cartunista Paulo Caruso, que faleceu neste dia 4 de março de 2023, aos 73 anos.
Paulistano da gema, Paulo José Hespanha Caruso nasceu em 6 de dezembro de 1949 e era irmão gêmeo – idêntico – e “mais velho” do também cartunista Chico Caruso. Mais velho por cinco minutos, já que Paulo foi o primeiro a vir à luz. Os primeiros contatos com a arte de desenhar e pintar vieram logo na infância, em especial por meio do avô.
“Desde os quatro ou cinco anos de idade a gente desenhava sem parar, incentivados pelo nosso avô materno, que era pintor amador. Ele pegava na mão da gente e ensinava a desenhar. Foi quem me ensinou a tocar violão também”, contava Paulo.
E o desenho realmente prevaleceu na vida dos dois irmãos Caruso, que se tornaram referência nacional e internacional do humor gráfico – apesar de ter se formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), Paulo nunca exerceu essa profissão, ainda que com certeza tenha projetado e criado nas HQs muito mais prédios, estruturas, vias (e mundos) do que qualquer outro arquiteto.
A vida de desenhista profissional começou – com charges e caricaturas – no jornal paulistano Diário Popular, no final da década de 1960, e no jornal Movimento (também atuou em outros veículos tradicionais, como a Folha de S.Paulo, e na Folha da Tarde, onde criou a tirinha “Pô”). Na década de 1970 foi para O Pasquim, onde trabalhou ao lado de outros gênios, como Millôr Fernandes (1923-2012), Jaguar e Ziraldo.
Também começou a se envolver com o Salão de Humor de Piracicaba, maior do gênero do Brasil e reconhecido mundialmente, logo após ele ser criado em 1974. Já na segunda ou terceira edição Paulo Caruso passou a fazer parte do evento que a partir de então nunca mais abandonou – em diversas ocasiões, inclusive, chegou a presidir o salão de humor.
Foi lá, inclusive, que no ano de 1985 resolveu unir duas paixões: música e desenho. Naquele ano criou a Muda Brasil Tancredo Jazz Band, ao lado de diversos cartunistas. Anos depois fundaria outra banda, a Conjunto Nacional, com Veríssimo e o cartunistas Aroeira nos saxofones e o irmão Chico no vocal.
A Avenida e outros Brasis
Mais do que as charges e quadrinhos em si, nas quais sempre houve um veio político e crítico, Paulo Caruso passou a relatar de maneira afiada e inteligente a vida política do país a partir da década de 1980.
Primeiro na revista Careta onde, com parceria do jornalista Alex Solnik, publicava uma HQ de uma página batizada de “Bar Brasil” – depois realocada para outra revista, a “Senhor”. A ideia era de um bar no qual se sentava atrás do balcão o presidente (o proprietário da vez), os garçons e clientes eram pessoas da vida política brasileira e semanalmente, com um humor preciso e demolidor, Paulo transformava a cena política da hora para uma situação metafórica do bar.
O “Bar” foi o protótipo para “Avenida Brasil”, publicada a partir de 1988 na revista “Isto É”. Mais abrangente e com a força de então de uma revista com maor distribuição em todo o Brasil, a avenida resumiu com ironia e graça os principais fatos políticos do Brasil nas décadas de 1980 e 1990. Tanto o Bar quanto a Avenida foram reunidos em diversos livros temáticos que, juntos, fazem de Paulo Caruso um dos melhores historiadores do cotidiano político do país.
Também naquela mesma década, Paulo Caruso começou a participar do programa Roda Viva, da TV Cultura. Retratando os entrevistados em tempo real e destacando de maneira perspicaz alguma fala da entrevista, ele participou pela primeira vez do programa em 1987 e nele permaneceu até 2 de janeiro de 2023, cerca de dois meses antes de falecer – o último retratado foi Rui Costa, ministro da Casa Civil.
Só no Roda Viva, foram mais de 2 mil charges e caricaturas em tempo real não só dos entrevistados – famosos da política, música, cultura e diversas outras áreas – como dos próprios jornalistas que participavam do programa.
Muita coisa boa
Reconhecimento e prêmios nunca faltaram a Paulo Caruso, um artista completo – ele se orgulhava, particularmente, pelo prêmio de melhor desenhista dado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), em 1994.
Diante de tanta coisa boa produzida nos mais de cinquenta anos de carreira, seria difícil elencar o que de melhor foi produzido. Com certeza, Avenida Brasil está nesta lista impossível e a página oficial do próprio autor (paulocaruso.com ) também faz alguns destaques:
As Origens do Capitão Bandeira, de 1983, e outros com cenas irônicas que acompanham a história política brasileira, Ecos do Ipiranga (1984) e Bar Brasil na Nova República (1986);
A Transição pela Via das Dúvidas (1989), por exemplo, Caruso utiliza a linguagem da história em quadrinhos, comentando a história do Brasil e também os acontecimentos contemporâneos. Revela preocupação com a ambientação dos personagens, inserindo-os em grandes planos abertos para, em seguida, aproximá-los do espectador.
Na caricatura, Caruso não emprega a deformação de maneira exagerada, apenas acentua os traços fisionômicos mais característicos, criando personagens facilmente identificáveis pelos leitores, pela grande semelhança com os retratados. O humor surge não só da forma de representação dos personagens, mas também dos diálogos travados e das situações narradas.”
Também é preciso citar Paulo Caruso – Um Olhar Bem-Humorado sobre Esta Cidade (2003), coletânea de textos e desenhos do cartunista em homenagem aos 450 anos da cidade em que ele nasceu.
“TOC” e crítica para todos os lados
Paulo Caruso costumava dizer que ele e o irmão Chico sofriam de um tipo especial de TOC: Transtorno Obsessivo Caricatural. A amiga e cartunista Laerte confirma: “Ele fazia retratos, caricaturas, com uma rapidez enorme. Quando tinha noite de autógrafos, ele não assinava ‘um beijo, Paulo Caruso’, ele fazia caricaturas, desenhava uma por uma das pessoas que estavam na fila. A gente foi brindada com esse lampejo de divindade que ele tinha”, relata, emocionada.
Outra característica de PC, como também era chamado por alguns amigos, era que o senso crítico afiado e que não perdoava ninguém – independentemente das próprias convicções, como cabe a todo bom chargista. Esquerda ou direita, Lula ou Bolsonaro, não importa: Paulo Caruso não tinha lado, a não ser o lado do bom humor e da ironia, seja “contra” quem fosse.
E a principal vítima, normalmente, era o governo da vez. “A matéria-prima é toda fornecida pelo governo. Eu acho que nós, cartunistas, deveríamos virar ‘estatal’ porque nós dependemos tanto do governo para nossa produção”, chegava a brincar.
A despedida
Em 2017, Paulo Caruso descobriu um câncer de intestino, contra o qual lutou até os últimos dias. Ainda que a doença não tenha sido tornada pública de maneira ampla, quem acompanhava o Roda Viva regularmente sabia que alguma coisa estava errada, em especial porque as ausências do cartunista começaram a se tornar mais habituais.
Durante a pandemia, em virtude da saúde mais frágil e idade do cartunista, que o tornavam parte do grupo de maior risco, o programa chegou a montar um esquema para que Caruso acompanhasse as entrevistas pela Internet e produzisse sua arte em tempo real.
Porém, nos últimos meses, a presença dele – mesmo virtual – foi rareando no programa e, no mês passado, o cartunista foi internado no Hospital 9 de Julho, em São Paulo, onde veio à óbito no dia 3 de março de 2023.
“Ele foi fundador do Roda, com seu traço desde o início do programa, as intervenções dele em charges e desenhos às vezes captavam o que o entrevistado estava dizendo nas entrelinhas, a sutileza de uma frase , com mais rapidez do que a bancada”, relembra a jornalista Vera Magalhães, âncora do programa da TV Cultura.
A passagem de Paulo Caruso repercutiu em todo o Brasil e fora dele, sendo noticiada nos principais veículos de notícia. Artistas do traço de todo o Brasil lamentaram a morte do colega – gente como Mauricio de Sousa, Dalcio Machado, Adão Iturrusgarai, Laerte, Aroeira, Jaguar e tantos outros prestaram homenagens ao amigo.
O gêmeo, Chico, também falou sobre o irmão: “Como cartunista, ele era mais prolixo do que eu, fazia grandes histórias desenhava grandes paisagens, eu sou mais preguiçoso. Na música, ele fazia as músicas que a gente cantava, tocava piano, violão, e eu não toco nada. Ele era músico, ele era meu maestro”, diz Chico, que afirma que a ligação com o irmão permanecerá por meios não-físicos, em outro plano, até porque os dois “eram a mesma pessoa, apenas com entradas e saídas diferentes.”
Políticos de partidos e ideologias diversas, muitos deles “alvos” de Paulo Caruso, também fizeram questão de render homenagens ao cartunista. Entre eles o ex-presidente Michel Temer, os deputados federais Guilherme Boulos, Maria do Rosário e Erika Hilton, o ministro do STF Gilmar Mendes, o governador Tarcísio de Freitas, o ex-governador Márcio França e diversos outros atuais ministros do governo federal e o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que postou no twitter:
“Paulo Caruso foi um grande desenhista e cronista político, com uma criatividade inesgotável, retratou com talento e consciência o dia-a-dia que constrói nossa história recente. O seu traço veloz e seu humor já são parte da memória nacional. Contribuiu com seu talento na luta pela democracia e por um país com direito à liberdade de expressão.”
Sem dúvida nenhuma.
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