Longe da fúria original
Há algumas (poucas) histórias em quadrinhos que já nasceram para ser filmes. Está tudo ali: o roteiro bem amarrado, os personagens carismáticos, o clima certo. Bastaria simplesmente filmar. É o caso, por exemplo, de V de Vingança, de James McTeigue, que estréia hoje, em Campinas, quatro salas. Infelizmente, V, o filme, fica muito a dever a V, a graphic novel de Alan Moore e David Lloyd.
E isso apesar do roteiro levar a assinatura dos irmãos Wachowski, aqueles mesmos responsáveis pela trilogia Matrix. É de se perguntar, quando as luzes se acendem, o que foi que deu errado. Para quem é fã da graphic novel, a lista de equívocos nem é muito longa, mas seus pontos são cruciais.
O filme falha, por exemplo, em capturar o verdadeiro clima de opressão que praticamente escorre de cada quadrinho da revista — e aqui, a ausência de Destino, o computador central que a tudo controla é imperdoável, especialmente porque vem de Destino um dos momentos mais emocionantes da graphic novel, quando V (Hugo Weaving) revela que há muitos anos controla o sistema sem que o sistema sequer sonhe que foi invadido.
Depois, diversos personagens secundários, mas cujas histórias são absolutamente cruciais no desenrolar (e principalmente na conclusão) da trama foram eliminados, com uma eficiência que deixaria os membros do governo fascista do filme vermelhos de vergonha pela sua incompetência.
Há ainda uma grandiloqüência desnecessária e equivocada no final do filme — uma tentativa frustrada de emocionar o público, e que soa completamente fora de propósito para quem leu a história original. E finalmente, e mais grave: o aspecto da vingança pessoal de V ganha mais força do que seu papel político — quando deveria ser o contrário.
V não quer meramente um acerto de contas pessoal. Verdade que ele não esquece e nem perdoa os horrores que viu e sentiu durante os primeiros anos de instalação do regime que agora surge para combater, com direito a experiências genéticas em campos de concentração que não deixavam nada a dever às dos nazistas em sua melhor forma. Mas, se fosse apenas isso, bastaria a ele eliminar os responsáveis pelo seu sofrimento (o que ele, efetivamente, faz — metódica e eficientemente, aliás).
Mas a cruzada de V não se restringe a pessoas. Sua amplitude é muito maior: ele quer matar todo um regime político. Não se conforma com a realidade que o cerca. Não se submete — e não admite que as outras pessoas se submetam. Quer abrir os olhos de seus concidadãos para o fato de que a realidade em que vivem não é a única possível.
Quer mostrar que o povo não deve temer um governo, mas todo governo deve temer o povo. Quer, como diz Evey já no final da graphic novel, esquartejar a ideologia dos que detêm o poder. Anarquista Sua vingança, portanto, transcende o mero gosto pelo sangue de seus algozes. E o fato de ele poder unir as duas coisas em sua cruzada, já que seus algozes são todos membros do próprio sistema que ele quer ver eliminado, é apenas uma feliz coincidência.
V é um anarquista no mais amplo sentido do termo. Ele quer erguer toneladas de poeira, resultado da explosão de tudo o que for um símbolo do poder instituído. Busca, acima de tudo, eliminar um governo por suas próprias mãos. No filme, isso acontece como que por mágica. Na graphic novel, pode-se ver que nenhum único dos passos de V é dado por acaso: ele se preparou durante anos a fio, em várias frentes, matando quem o torturou sem deixar pistas, minando pouco a pouco toda a estrutura do estado policial que o cerca sem ser jamais pressentido, a não ser quando ele mesmo decide que é hora de subir ao palco.
Resta ao espectador saborear a força do personagem. V é um executor frio, capaz de matar enquanto cita Shakespeare. Tem gostos refinados, uma cultura extraordinária e habilidades igualmente extraordinárias (das quais fabricar explosivos com produtos químicos que qualquer um pode comprar em supermercados é apenas uma), uma força e uma rapidez sobre-humanas (fruto das experiências de que foi vítima) e uma determinação implacável.
É, em resumo, o terrorista que todo terrorista gostaria de ser — e ainda assim, ganha a simpatia do público porque, como todo vingador, é do lado dele que vem o “troco”, a “justiça divina”, o “acerto de contas”. E é sempre por isso que as pessoas torcem.
O roteiro final, contudo, rende-se ao fato de que jogar um personagem como esse — anarquista, assassino, terrorista — como “herói” de uma história seria algo realmente complicado nesses dias em que uma mera piada dita no lugar errado pode ser encarada como uma ameaça e resultar até na prisão de seu autor. Uma pena, porque a história de V é, antes de tudo, subversiva — e não se pode usar de meios-termos quando se quer ser subversivo. A graphic novel sabia disso. O filme se esqueceu.
Desejo pessoal
Os Warshowski trataram de suavizar as coisas o máximo possível. Deram a V nuances mais “humanitárias”. Priorizaram seu desejo pessoal de vingança sobre suas motivações políticas (muito claras na história original: destruir para reconstruir, eliminar a opressão para fazer florir a liberdade, explodir uma realidade para que outra possa se erguer sobre os escombros).
E até forçaram envolvimento que beira o amor entre ele e Evey (vivida por Natalie Portman, que, na história original, é apenas uma menina de 16 anos que V salva muito mais para ser sua aprendiz do que por quaisquer outros motivos). Aliviaram a faceta política do personagem e deram mais peso para seu lado “humano".
Pode funcionar para quem não conhece a graphic novel. Para quem conhece, contudo, resta apenas suspirar e tentar manter em mente que transpor para as telas a história de um terrorista, assassino e anarquista no mais amplo sentido de cada termo talvez seja ousadia suficiente. Mas V merecia mais.
O pano de fundo de V de Vingança é pouco original (como aliás reconhece o próprio autor na nota de apresentação da graphic novel): depois de uma guerra nuclear, o planeta ficou de pernas para o ar. A autoridade desapareceu, o caos se instalou. Não havia mais ordem – apenas grupos de arruaceiros, cada um tentando dominar um pedaço de terreno.
Nesse clima, alguns pequenos partidos fascitas ingleses se aglutinaram para formar a “Nórdica Chama”. A socos, pontapés e golpes de porrete, seus integrantes foram restabelecendo a ordem. O fato de ser a ordem “deles” não importava — a população estava tão desesperada e tão exausta do inferno em que havia submergido, que aceitou de braços abertos esses novos salvadores. (publicada originalmente no jornal Correio Popular, em 7/04/06)
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