Trocar a cor da pele de um personagem (ou às vezes, até mesmo o gênero) quando ele muda de uma mídia para outra ou mesmo em diferentes versões de uma mesma produção não é lá grande novidade. Que o diga Nick Fury, que nasceu em 1963 nos quadrinhos como um homem branco, mas se consolidou no imaginário mundial como um homem negro, graças à brilhante interpretação de Samuel Jackson nos filmes da Marvel a partir de 2008.
As razões para as mudanças de etnia – em inglês, o termo que vem se padronizando é race swapping (troca de raça) – são, basicamente, promover a inclusão, a representatividade, e atingir um público mais amplo. E, em especial quando se fala dos heróis e heroínas nas histórias em quadrinhos, a maioria dos que se firmaram e ganharam as telas surgiu entre o ano de 1938 e a década de 1970, período em que consumidor como o produtor estadunidense eram em sua maioria branco.
O resultado foi claramente refletido nas páginas das HQs e por isso, nos tempos atuais, muitos personagens “mudam de pele” para refletir melhor a diversidade do mundo. Exemplos não faltam e o MundoHQ já falou amplamente sobre isso em reportagem de 2020 (Trocando de cor: Os Novos Mutantes reacende polêmicas sobre mudança de etnia entre quadrinhos e filmes…pode ou não pode? ).
Contudo, ainda que não seja novidade, basta que ocorra uma troca para que surjam estranhezas, polêmicas e, infelizmente, racismo. Um dos casos mais recentes é o filme live action da Pequena Sereia, que a Disney está produzindo para o ano que vem.
Em 2019, a empresa já havia anunciado que a personagem principal seria interpretada pela atriz negra Helle Bailey, o que já causou um certo barulho.
Em setembro de 2022, porém, saiu o trailer e parte do público, em especial nos recônditos da Internet, abriu o berreiro porque a branquinha Ariel do desenho de 1989 deu vez a uma bela jovem negra – os cabelos ruivos foram mantidos em ambos os casos, mas com direito a dreadlocks no filme.
“Só falta colocar uma atriz loira para interpretar a Tiana de a Princesa e o sapo, que é negra, ou uma ruiva para fazer a Pocahontas”, queixou-se uma internauta no twitter. “Ariel era a branca de cabelo vermelho que conquistou os corações de milhões de crianças em todo o mundo. Elas esperariam que ela fosse a mesma no filme live-action. Não entendo a escolha da atriz”, lamentou outro fã.
A maioria destas pessoas que reclamou não entende que esteja sendo racista. Para elas, se trata de algo chamado “purismo.” Os puristas são aqueles admiradores ferrenhos das mais diversas obras, que querem que elas se mantenham fiéis ao original e que chiam quando algum detalhe é adaptado, independentemente dele ter ficado melhor ou pior.
Assim, na ausência de uma sereia de verdade para interpretar Ariel no filme, essa galera queria uma atriz branca de cabelos vermelhos, provavelmente com uns 15 anos de idade. Ocorre que esse purismo é, em si, uma grande baboseira. Afinal, o desenho já mudou – e muito – o conto original do dinamarquês Hans Christian Andersen, de 1837.
A descrição da sereiazinha original, por exemplo, era bem vaga e especificava apenas que ela tinha “a pele clara e delicada como uma pétala de rosa”.
Não há nenhuma descrição dos cabelos e as ilustrações que acompanham a obra não deixam claro de que cor seriam, até porque são em preto e branco.
A decisão de Ariel ter cabelos vermelhos no desenho, porém, foi da Disney, que inicialmente ia fazer a personagem de cabelos amarelos, quando alguém questionou que a casa já tinha diversas princesas loiras. A produção aceitou a crítica e fez uma ruiva…
Agora, o que mudou mesmo foi a história. Apenas para se ater ao básico, para início de conversa no conto de Andersen, a pequena sereia (que não se chama Ariel, nem nome tem) sofre muito mais para ganhar as pernas.
Não só perde a voz para a Bruxa do Mar como, ao tomar a poção, “sente como se uma espada estivesse atravessando seu corpo” e, quando ganha as pernas, consegue dançar como nenhum outro ser humano jamais dançou, mas “se sente como se estivesse caminhando sobre facas afiadas.”
Mais ainda, sereias, diz o conto, não têm alma como os humanos. Assim, elas vivem por 300 anos, mas quando morrem viram espuma do mar, enquanto os humanos vivem menos, mas ao morrerem suas almas vão para o paraíso. Por isso, era necessário que o príncipe declarasse seu amor e se casasse com ela, dividindo assim a própria alma com a amada. Caso contrário, se transformaria em espuma do mar no alvorecer do dia seguinte ao casamento dele com outra.
Com efeito, o príncipe acaba marido de outra – em um casamento arranjado em prol do reino – e as irmãs da sereiazinha partem em seu auxílio.
Elas permitem que a Bruxa do Mar lhes corte os longos cabelos em troca de uma faca encantada que resolveria os problemas imediatos da irmã mais nova. Bastava matar o príncipe e a esposa para que ela voltasse a ser uma sereiazinha por mais alguns séculos.
A personagem, porém, não consegue assassinar o amado. O corpo dela, então, se dissolve em espuma, mas para a surpresa da garota ela percebe que se transformou em um espírito do ar: como recompensa por não ter poupado o casal e sacrificado a própria vida, ela ganhou uma nova chance. Passará os próximos 300 anos como uma “filha do ar”, fazendo boas ações para a humanidade e, ao fim desta missão, ganhará uma alma e poderá ir para o Paraíso.
E aí, senhores puristas, igualzinho ao desenho, não?
Por que Ariel ser negra é fantástico?
Meninas brancas cresceram vendo um amplo leque de princesas brancas como elas em contos de fada – até porque a maioria deles vêm da Europa caucasiana – e adaptações destes contos nas mais diversas mídias. Meninas negras também gostam dessas princesas, é verdade e não há nada de mal nisso. Mas, obviamente, enxergam que são diferentes delas, o que torna mais difícil uma identificação necessária.
É o que acontece, de maneira similar, com os meninos negros e os super-heróis brancos. Como bem explicou um dos fundadores da editora Milestone, que revolucionou o mercado de quadrinhos estadunidense nos anos de 1990 ao lançar quadrinhos apenas com heróis negros e latinos: “Toda boa história toca você. Eu mesmo sou um grande fã de Super-Homem. Mas quando você lê uma história em que se enxerga no herói, em que ele é igual a você, a alguém da sua vizinhança, a história ressoa muito mais em você.”
Um exemplo claro de como essa representatividade funciona foi a importância que ganhou o filme do Pantera Negra, primeiro blockbuster do cinema mundial a ter um herói negro como protagonista. Imagine o número de crianças que antes olhavam ao redor e não encontravam um herói similar a elas em quem se projetar e como o filme mudou a vida delas e a dos pais.
Agora imagine a mesma coisa em relação às meninas negras que ganharam A Pequena Sereia para se espelhar. Aliás, nem é preciso imaginar: há vídeos na Internet que mostram a reação de crianças ao perceberem que a personagem tem a mesma cor de pele delas. As imagens dizem tudo. E são simplesmente tocantes (clique aqui para ver)
Outros exemplos recentes: Annabeth, de Percy Jackson
Além de Ariel, outros race swaps chamaram a atenção nos últimos tempos. Na esperada série de Percy Jackson para a Netflix, por exemplo, a personagem Annabeth Chase, que no livro é branca, loira e de olhos claros, vai ser interpretada pela atriz negra Leah Jeffries.
Mais uma vez, não há nada demais em a mudança causar uma estranheza inicial em quem leu os (muitos) livros e estava acostumado com a descrição. O problema é quando as pessoas não superam isso em alguns minutos. Primeiro porque os “puristas” não reclamaram quando Alexandra Dadario, de cabelos pretos, interpretou Annabeth no filme (que, por sinal, é terrível se comparado ao livro, algo que se espera que o seriado corrija).
Segundo porque a atriz de 12 anos foi vítima de ataques covardes e racistas por parte de alguns, o que é imperdoável. O autor dos livros, Ricky Riordan, saiu em defesa da atriz mirim.
“A resposta ao casting de Leah foi extremamente positiva e alegre, como deveria ser. Leah traz tanta energia e entusiasmo para esse papel, tanto da força de Annabeth. Ela será um modelo para as novas gerações de garotas que verão nela o tipo de heroína que querem ser. Se você tiver um problema com essa escalação, no entanto, fale comigo. Você não tem mais ninguém para culpar. O que quer que você tire desta postagem, devemos concordar que intimidar e assediar uma criança online é indesculpavelmente errado. Por mais forte que Leah seja, por mais que tenhamos discutido o potencial para esse tipo de reação e a intensa pressão que esse papel trará, os comentários negativos que ela recebeu online estão fora de linha. Eles precisam parar. Agora.”
E concluiu, se dirigindo aos que tiveram atitudes mais extremadas (e criminosas): “Uma vez que você veja Leah como Annabeth, ela se tornará exatamente do jeito que você imagina Annabeth, supondo que você dê a ela essa chance, mas você se recusa a acreditar que isso pode ser verdade. Você está julgando a adequação dela para esse papel única e exclusivamente pela aparência dela. Ela é uma garota negra interpretando alguém que foi descrito nos livros como branco. Amigos, isso é racismo.”
Gavião Negro e Salsicha
Outros dois personagens que se tornaram negros recentemente parecem não ter gerado tanta polêmica quanto Ariel e Annabeth. O primeiro deles é Gavião Negro (Hawkman), personagem da DC Comics criado em 1940. Nos quadrinhos, o personagem é branco, porém no recente filme Adão Negro, ele foi interpretado por Aldis Hodge.
Não se sabe se a chiadeira não aconteceu porque boa parte dos fãs de filme de herói não estão tão familiarizados com o personagem original ou se finalmente se concentraram no filme em vez de perder tempo com besteiras, mas o fato é que os comentários sobre Gavião Negro no filme se resumiram basicamente às lutas e pancadaria promovidas pelo personagem.
Já na animação adulta Velma, que deve estrear na HBO Max no ano que vem, a personagem título tem a pele escura (aparentemente ela é agora indiana, a conferir), e ela mesmo brinca com a própria mudança no trailer divulgado pelo canal.
Nele, Velma está escrevendo uma mensagem protestando contra a mudança de Judy Jetson, a filha mais velha de Jorge no desenho os Jetsons, em uma nova atração. E em determinado momento diz: “Pelo menos ela continua branca.”
Algo que nesta animação não acontece com a própria Velma , com Daphne (que se tornou asiática) e com Salsicha, que agora é negro. Só Fred continua mais branco do que nunca…
Talvez por se tratar de uma versão específica para adultos e não em uma mudança no desenho original, ninguém reclamou, só achou graça. Teve quem brincou dizendo que o nome de Salsicha em inglês devia mudar de Shaggy (que quer dizer “desgrenhado”, por causa do cabelo, roupas etc) para Swaggy (algo como “estiloso”).
As únicas estranhezas foram o fato de Scooby Doo não fazer parte da série (pelo menos ao que parece) e de Salsicha aparecer no trailer sendo chamado pelo nome de batismo, Norville. Shaggy, é bom reforçar, é o apelido do personagem em virtude de ele ser desgrenhado. Mas o nome real de Salsicha é Norville (o que foi revelado nos desenhos da década de 1980) e o sobrenome é Rogers (desde 1970, quando apareceu pela primeira vez em um gibi de Scooby Doo).
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