Em 1962, o cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, recebeu uma encomenda de uma agência de publicidade para criar uma campanha publicitária. A contratante era uma grande marca de eletrodomésticos, chamada Mansfield e a ideia era criar uma “família-propaganda”, que ajudasse a vender itens como geladeiras, ar-condicionado, fogões, etc. Mais ainda, como havia pouca verba, a família estrearia uma tirinha – cujo quadro final remeteria à Mansfield -que seria dada de graça para os jornais publicarem.
Acontece que os jornais perceberam a tentativa de ´propaganda de graça e recusaram a tira, o que fez com que a agência devolvesse “a família” ao criador. Quino, então, resolveu aprimorar o conceito da tira e os personagens, além de esperar um pouco antes de retornar ao mercado, talvez dando um tempo para que os jornais procurados pela agência esquecessem a tentativa da empresa em obter publicidade gratuita. Só dois anos depois, em 29 de setembro de 1964, o autor publicaria as primeiras tiras estreladas por Mafalda revista Primera Plana.
Importante destacar que a “família-propaganda” foi considerada uma prequel da “verdadeira tira” de Mafalda, razão pela qual o próprio autor sempre considerou o aniversário da personagem como sendo em setembro de 1964. Na criação publicitária havia algumas diferenças, entre as quais o fato de serem desde o início duas crianças, um irmão mais velho e uma irmã mais nova, além do pai e da mãe. O garoto se parecia bastante com Charlie Brown, da tira Snoopy, e apresentava algumas características de personalidade que acabariam incorporadas à personagem vindoura.
Já a menina era, a princípio, a única batizada por Quino: Mafalda. Isso porque havia uma indicação da agência para colocar nos personagens nomes iniciados com “MA”, remetendo à Mansfield, e ao assistir um filme de 1962 (Dar La Cara), Quino se deparou com uma personagem bebê chamada Mafalda. “Mesmo assistindo a um filme no cinema, eu estava trabalhando. Ali encontrei um nome que tinha M, F, D, várias letras de Mansfield”, relembrou o autor em entrevistas.
As novas tiras eram centradas inicialmente no pequeno núcleo familiar de Mafalda. O pai, que nunca ganhou nome, é um homem de meia idade insatisfeito com o trabalho e um tanto quanto alienado. A mãe, que em algumas tiras ganhou o nome de Raquel, constantemente esconde a frustração por ter deixado de lado a carreira de lado para ser dona de casa e por muitas vezes – entre as inúmeras tarefas domésticas – se preocupa com questões de menor importância, que geram confronto com a filha.
E a garota, estrela principal da tira, é uma menina com personalidade forte, inteligente, contestadora e preocupada com temas sociais. Fã dos Beatles e extremamente ligada às notícias do mundo, Mafalda é acima de tudo questionadora, o que rapidamente a catapultou para o sucesso em uma época em que o mundo – e a Argentina – vivia sob crises ditatoriais e políticas imensas.
Diga-se de passagem, a crítica social das tiras de Mafalda sobreviveu a seu próprio tempo. Felizmente para Quino e infelizmente para o mundo. É triste notar que, mais de meio século depois as tiradas de Mafalda sobre como o homem maltrata o mundo, a lentidão da burocracia governamental, as mazelas auto infringidas da humanidade e a cultura sendo vencida pela comercialização de produtos permanecem mais atuais do que nunca.
Após as primeiras vinte ou trinta tiras, Quino começou a incluir outros personagens na história, em especial mais crianças – o primeiro a surgir foi Felipe, depois vieram Manolito, Suzanita e outros meninos e meninas que refletiam muito mais os adultos da época do que os pequenos. A tira começou a fazer cada vez mais sucesso e, após seis meses do Primeira Plana, “se muda” para o El Mundo de Buenos Aires – ali, durante dois anos saíram seis tiras de Mafalda por semana. Jornais de outras cidades também começam a publicar Mafalda.
Em 1966, uma pequena editora de Buenos Aires lançou uma coletânea de tiras de Mafalda e a obra se esgotou em 12 dias – ali se iniciaria um período de vinte anos nos quais dez álbuns de Mafalda em língua espanhola seriam lançados, vendendo milhões de exemplares. Ainda em 1966, Mafalda começou a ser publicada em outros países da América Latina.
Em 1967, Quino migrou do El Mundo para o jornal Siete Diás, então um dos mais populares da Argentina. No ano seguinte Mafalda foi traduzida pela primeira vez para outra língua, com 30 tiras publicadas em uma antologia na Itália, Il Libro dei Bambini Terribili (ou “O livro das crianças terríveis”). Em 1969, a personagem teria o primeiro livro lançado na Europa, Mafalda la Contestararia.
Em 1970, a menina foi publicada pela primeira vez na Espanha e em Portugal e apareceu pela primeira vez no Brasil, em uma revista de pediatria e pedagogia. Mafalda simplesmente não parava de crescer: em 1971 chegou a jornais australianos, israelenses, finlandeses, dinamarqueses, suecos, noruegueses, alemãs e franceses – além de ter virado produto de merchandising na Itália, com cadernos e outros materiais escolares.
Ao todo, Mafalda chegou a ser reproduzida em mais de 30 países, em 16 idiomas diferentes. Mas antes disso, no mesmo ano de 1971, Quino assinou contrato para que a personagem virasse desenho animado: foram 260 filmes de um minuto e meio (que posteriormente viriam a ser remontadas em 52 animações de cinco minutos).
Em 1973, porém, Quino desenhou a última tira original da personagem. Oficialmente, afirmou na época que temia se repetir nas tiras, o que inevitavelmente aconteceria, na opinião dele, após praticamente uma década fazendo as historietas. A justificativa parece plausível, mas a verdadeira razão teria sido revelada na época apenas em círculos mais íntimos.
Ele já vislumbrava que a situação da Argentina pioraria ainda mais quando Perón não fosse mais presidente e Mafalda não conseguiria continuar fazendo graça de maneira mordaz, porém leve, com o que se sucederia. Temia, ainda, retaliações políticas. Com efeito, Peron morreu em 1974 e a esposa e vice-presidente dele – Maria Estela Martinez, a Isabelita – assumiu o poder. A própria cronologia do site oficial de Quino descrevia o que ocorreu então da seguinte forma: “intensifica-se a ação dos grupos paramilitares: torturas, sequestros, desaparecimentos e mortes”.
Com isso o próprio Quino deixaria o país natal pouco depois. “Na época, em 1976, havia muita insegurança, eu tinha muitos amigos que morreram ou desapareceram e, como estar na agenda de alguém era muito perigoso, eu fui embora da Argentina, para Milão”, contava o autor, que só depois da abertura democrática voltaria a morar em Buenos Aires e, posteriormente, em Mendoza.
Depois do fim das tiras, Quino desenhou Mafalda apenas por uma ocasião especial: em 1977, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), pediu a ele que ilustrasse a Declaração dos Direitos das Crianças usando Mafalda e seus amigos. O autor produziu então dez vinhetas e um poster originais, que começaram a ser divulgados dos anos depois, em 1979, como parte da campanha do Ano Internacional da Criança.
Também naquele ano a editora Bompiani reuniu pela primeira vez todas as tiras de Mafalda em um único volume intitulado Tutta Mafalda. E, em 1981, começaram a ser lançados no Brasil os primeiros livros com coletâneas de Mafalda. Por sinal, a versão brasileira da obra italiana, Toda Mafalda, foi originalmente lançada por aqui pela Editora Martins Fontes.
Mafalda, claro, também virou brinquedo, jogos, objetos diversos de decoração, memorabília e cedeu sua imagem aos mais diversos produtos de merchandising. E, merecidamente, na Argentina virou nome de praça, estátua e um dos símbolos do país.
Vale lembrar ainda que em 2023 foi lançada a excelente docussérie argentina Voltando a ler a Mafalda, que pode ser conferida no streaming da Disney Plus. A série traz entrevistas originais de Quino, imagens inéditas e entrevistas com diversos cartunistas argentinos que foram inspirados por Quino e Mafalda, entre eles Liniers e Maitena.
Enredo
Mafalda é uma menina de seis anos extremamente bem-informada e contestadora, que vive questionando o mundo e a sociedade à sua volta. Ela vive com os pais, que ama muito, mas trata com uma ironia brutal. Além do dia a dia em casa, também aparece em histórias com os amigos, geralmente na escola ou nas ruas do bairro em que mora.
Também há tiras que são protagonizadas por outros personagens da turma (como Filipe, Susanita, Miguelito ou Liberdade), sem que Mafalda necessariamente apareça nelas. Na maioria absoluta das tiras está presente a crítica social ou política, de maneira afiada, divertida e até mesmo disfarçada.
Uma das características marcantes de Mafalda e que rendiam boas piadas, por exemplo, é o ódio da menina à sopa preparada pela mãe. Porém, segundo Quino, a sopa não estava ali como simples alimento. “A sopa era uma alegoria dos governos militares, algo que ela não gostava, mas que tinha que suportar”, dizia.
E eis aí uma das características peculiares das tiras de Mafalda: quem sabe o contexto no qual foram produzidas poderá enxergar mais significados além dos óbvios. Quem não sabe irá se divertir do mesmo jeito.
Principais personagens
Mafalda – É uma menina de seis anos extremamente inteligente, contestadora e dona de uma ironia brutal. É fã dos Beatles, odeia sopa e sonha com a paz mundial.
O Pai – Sem nome nas tiras, é um típico trabalhador de escritório, um sujeito comum com uma filha bem incomum, a quem muitas vezes não compreende (na verdade, há ocasiões em que ele nem percebe que está sendo criticado). De vez em quando, entra em crise porque está ficando mais velho.
A Mãe (Raquel) – É uma mãe amorosa e uma dona de casa que não concluiu os estudos e se dedica às tarefas do lar. É mostrada constantemente como uma mulher que não para de trabalhar nas tarefas da casa. Às vezes também sofre com problemas de autoestima, influenciada por padrões de beleza e matérias que vê na televisão.
Filipe (também grafado como Felipe) – É um menino com uma imaginação enorme e sonhador. Ao mesmo tempo, também é bem consciente das obrigações, em especial na escola, o que costuma deixá-lo bastante ansioso .
Manolito – É filho do dono do mercado do bairro , bem limitado intelectualmente e vive pensando em meios de ganhar dinheiro.
Suzanita – A fofoqueira do bairro e praticamente o oposto de Mafalda. Fútil e egoísta, sonha em crescer e se casar com um homem rico
Guile – O irmãozinho mais novo de Mafalda surgiu na tiraa em 1968, com os leitores acompanhando a gravidez de Raquel e as reações de Mafalda à ela. É um menino inteligente que está descobrindo o mundo…e que tem a ajuda de Mafalda para interpretá-lo.
Miguelito – Um garotinho que tem um coração enorme e, por vezes, um ego do mesmo tamanho, achando que o mundo gira em redor dele. Às vezes leva o que Mafalda diz muito ao pé da letra, o que gera boas risadas para os leitores.
Liberdade –Uma das últimas personagens a serem criadas, em 1970, é uma menina extremamente pequena, o que gera piadas óbvias em torno do nome dela. É bem enfezadinha e não leva desaforo para casa.
Burocracia – O animal de estimação de Mafalda é uma tartaruga, o que fez com que a menina a batizasse com este nome já que, afinal, a Burocracia é muito vagarosa e não se importa com a necessidade das pessoas.
Curiosidade: Fãs comemoraram 50 anos antes da hora
Em março de 2012, fãs de Mafalda de todo o mundo comemoram o aniversário de 50 anos da personagem…com dois anos de antecedência! Isso porque levaram em consideração a criação efetiva dela, como parte da família da propaganda da empresa Mansfield. No entanto, o próprio Quino – que viria a falecer em setembro de 2020, aos 88 anos – foi a público para deixar claro que considera o ano de 1964 como nascimento de Mafalda, já que foi a partir de então que começou a publicar as tirinhas da menina. Ou seja, Mafalda foi criada antes de nascer.
Comentar