O americano Matt Groening criou um sucesso absolutamente inquestionável, há mais de 30 anos no ar, vencedor de inúmeros prêmios e considerado uma das maiores séries televisivas de todos os tempos: os Simpsons (que teve os primeiros curta metragens exibidos num hoje longínquo 1987). Logicamente, Groening também criou uma expectativa – e uma cobrança – enorme em relação a qualquer projeto dele que viesse depois da família mais disfuncional do planeta. E é sob essa sombra gigantesca que (Des)Encanto – ou (Dis)enchantment, no original – chegou no mês de agosto de 2018 ao canal de streaming Netflix.
E não, não fez feio. Pelo contrário. Segundo dados da Nielsen Media Research, o primeiro episódio do desenho-seriado conseguiu uma audiência de 4,4 milhões de pessoas por minuto apenas nos Estados Unidos, superando os episódios iniciais da segunda temporada de Glow e The Crown, por exemplo. A maioria do público, ainda segundo a Nielsen, é composta por homens jovens (em média 29 anos) e, em termos de gênero da audiência geral, 60% são do sexo masculino e 40% do feminino – padrão que seria semelhante ao da série scy-fi Perdidos no Espaço. Cabe ressaltar que a Netflix não reconhece estes ou outros números apurados pela Nielsen, que diz estarem bem aquém da realidade. Reais ou subdimensionados, ainda assim trata-se de uma audiência respeitável.
Na mesma medida também vieram muitas críticas em relação ao novo seriado, boa parte delas gerada pela já citada super expectativa sobre tudo que Groening toca, pela ânsia por um novo The Simpsons. Mas afinal, as críticas eram merecidas? Ou seriam necessários mais elogios? Vejamos…
Se para a família Simpson o cenário escolhido por Groening foi o presente da humanidade e para o inconstante Futurama, o futuro (dããã), sobrou o passado medieval e cheio de fantasia para ambientar esta nova aventura. Ou melhor dizendo, essa aventura-comédia escrachadinha que já tem segunda temporada confirmada* (a Netflix inicialmente comprou de Groening duas seasons de dez episódios cada uma).
A personagem principal é a princesa Tiabenie de Dreamland ou, simplesmente, Bean. Adolescente, bêbada, inconsequente e criada por um pai narcisista e ausente, a menina é receita para encrenca e por isso (e para selar um acordo com o reino vizinho) o rei Zog decide casá-la.
Ao mesmo tempo, uma estranha seita manda de presente para a moça um “demônio pessoal”, Luci, para tentá-la para o mal (como se ela precisasse de ajuda). Além disso, um elfo que não se conforma com a felicidade e o jeito estranho em que sua raça vive – “a gente faz doces para ser pago em doces!” – resolve abandonar o povo dele e acaba indo parar justamente no castelo, formando um trio bastante improvável.
Conforme a história vai se desenrolando, o espectador vai tomando conhecimento dos diversos panos de fundo da história: Bean é órfã de mãe e a morte da rainha ocorreu em circunstâncias estranhas; a reptiliana rainha Ooona (nova esposa do pai) é fruto de um casamento arranjado para manter a paz; a vontade do rei Zog em obter o elixir da vida eterna do sangue de Elfo tem razões além das que ele revela… Com tudo isso e muito mais, o argumento da história acaba se amarrando ao final dos dez episódios e, quem diria? Descobre-se que a aventura tinha uma linha condutora mais bem definida do que se pensava e tudo fica aberto para a próxima temporada, com um gostinho de quero mais.
OK, mas e as piadas, são boas? Afinal, a série é engraçada? Sim, sem dúvida. Há diversas gozações, sutis ou nem tanto, com o gênero (inclusive com Game of Thrones, na já famosa cena do casamento de Bean frente a um trono no qual muita gente em GOT briga para se sentar). Mas o ideal para se aproveitar melhor o humor é saber inglês. Não só para ouvir o original com direito a sotaques deliciosos como também, principalmente, para que algumas piadas que se valem da língua original façam sentido.
A cena em que Oona, por exemplo, diz que no dia de seu casamento estava com butterflies in the stomach (“ter borboletas no estômago”, uma conhecida expressão para se estar nervoso) e depois completa dizendo que não devia ter comido tantos insetos naquele dia, não faz sentido algum em português, dublado ou com legenda. Os nomes dos elfos com “o” no final de acordo com suas personalidades ou mesmo o diálogo entre o autoexilado deles e a mulher se afogando – “I’m drawning! / “I’m Elfo” – também se perdem na tradução. E estes são apenas uns poucos exemplos.
Independentemente disso, as risadas são garantidas em especial com o cinismo dos personagens e nas zoações com os jargões típicos de fantasia, filmes (O Exorcista, por exemplo) e contos de fada – João e Maria ganham uma versão bem macabra e as fadas, em especial uma certa loirinha de roupinha verde, aqui aparecem como velhas e acabadas, bem, digamos, garotas de programa.
Também há ironias de sobre e críticas contundentes a certos conceitos (alguns medievais que insistem em permanecer, inclusive), setores e instituições da sociedade. A religião organizada, por exemplo, é vítima da mira ferina e acurada do time de Groening quando o rei Zog manda Bean para um convento, já que para ele as únicas profissões para quais as garotas servem são ser princesas ou freiras…
É interessante notar, porém, que o bom e velho puritanismo americano se faz presente. Desde o início, (Des)encanto não se furta a usar humor negro e escatológico, com sangue, vísceras e pedaços de seres humanos, animais e criaturas fantásticas para todos os lados – uma das cenas já clássicas espalhadas pela Internet é aquela na qual Bean aparece cortando inúmeros pedaços de carne e se dizendo feliz por ter descoberto a vocação de açougueira… e é informada que aquilo ali é um petshop.
Porém, quando se trata de mostrar qualquer coisa que possa ser caracterizada como mais sensual (e uma das características da princesa é levar uma vida bastante libertina), todo o cuidado é pouco. Assim, quando ela leva ao pé da letra a ordem do rei de se livrar das roupas que está usando, tira apenas a camisa e a “câmera” a filma por trás, mostrando apenas as costas nuas. Em outro episódio, quando Bean, bêbada, sobe na mesa e acaba indo parar de ponta-cabeça no lustre e o vestido cai, mais uma vez o foco é mostrar pouco mais que as costas.
Não, ninguém espera uma série satírica pornô, nada disso. Mas não deixa de ser irônico o fato de haver tanto esmero para esconder os seios e nenhum pudor em relação a tripas e pedaços de corpos. Enfim, talvez isso explique porque o tradicional slogan hippie “make Love, don’t make war” nunca pegou nas terras de Tio Sam…
Aliás, antes de encerrar o assunto puritanismo, vale lembrar que o desenho é (Des)encanto é indicado para maiores de 14 anos.
Música
A trilha sonora de (Des)encanto também causa um pouco de estranheza inicial. As musiquinhas dos elfos são hilárias, assim como a da missão dos soldados do canastrão Pendergast também é engraçadinha (poderiam ter feito melhor se inspirando no excelente game/hq A aventura do herói).
Porém as demais músicas são orquestradas e há momentos em que parecem ter sido executadas por uma bandinha de polca – mesmo a versão de da bowieana “Rebel Rebel”, no trailer no fim deste texto, é dura de reconhecer. Difícil saber se a ideia foi fazer uma homenagem (?) à música da época medieval ou falta de tempo e inspiração para fazer mais letras engraçadas. Dá pra melhorar.
Versão brasileira
Como sempre, a dublagem brasileira – que tem entre destaques Luísa Palomanes como princesa Bean – é um primor: boas vozes, sincronia perfeita, ritmo invejável. Já o texto versionado poderia ser melhor.
Se por um lado há acertos (o sotaque caipira do sujeito que viu os seios de Bean ao entrar no salão real, por exemplo, caiu como uma luva), por outro o responsável pela versão aparentemente achou que seria interessante substituir algumas falas originais por frases de efeito modinhas, em especial algumas que se originaram na Internet.
O resultado é de gosto duvidoso. Por exemplo, logo no primeiro episódio, ao chutar Luci escada abaixo, Bean diz na legenda em português “É assim, meu amigo, que devolvemos os presentes”. Já na versão brasileira a fala virou “Beijos, bebê! Demônios machistas não passarão”. Ããããah? Como assim “demônios machistas”? De onde diabos (ooops) tiraram isso?
Um outro exemplo (há vários) é quando o assecla dos dois magos (?) da seita que enviou Luci para Bean os observa comemorando um malfeito e diz originalmente: “Embora questione os motivos malignos, é legal vê-los alegres”. E o que sai da boca deles em português é “E ainda disseram que eles estavam na pior, se isso é estar na pior…porra!”.
Veredito final: bom, e pode melhorar
Ok, com certeza há espaço pra evolução, mas na prática (Des)encanto vai melhorando do primeiro para o último episódio e a impressão que fica é que a série ainda precisa achar o seu ritmo. Nada mais natural, afinal este é a primeira temporada e mesmo os Simpsons não foram um primor logo de cara.
Independentemente disso, dá pra dar boas risadas com (Des)Encanto – tanto com o trio central quanto com personagens secundários como rei Zorg, os príncipes pretendentes, a guarda real, os cidadãos elfos – e a aventura deixa ao final um sabor de quero mais.
E de “quero saber o que vai acontecer na sequência”, já que, como toda boa série da Netflix, o final termina em aberto e deixando uma série de perguntas não respondidas para a próxima temporada.
*Nota da redação: Desencanto teve “três temporadas divididas em um total de cinco partes”. O último episódio inédito do desenho animado foi levado ao ar em 1º de setembro de 2023
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