Estamos no ano 2005 depois de Cristo. Todo o mundo foi invadido pelos quadrinhos japoneses, os chamados mangás. Todo? Não ! Uma aldeia por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor em O Dia em Que o Céu Caiu, 32º livro de Asterix, o gaulês, recém-lançado no Brasil. Uma aventura controversa, que vai chocar diversos fãs de carteirinha, mas que tem como carta na manga uma crítica nada velada ao presidente estadunidense George Bush.
O desenhista Uderzo – que desde a morte do roteirista e parceiro Goscinny, em 1977, vem escrevendo e ilustrando os álbuns sozinho – levou quatro anos para lançar este livro que já está sendo apontado por muitos como a última HQ de Asterix. Isso porque Uderzo está com 78 anos, admite que tem cada vez mais dificuldades ter idéias para a série e, para completar, está daltônico e com problemas nas mãos, o que dificulta a confecção dos desenhos – que, diga-se de passagem, continuam soberbos.
Já o argumento da história destaca-se pela sátira tanto ao mercado de quadrinhos mundial quanto a George Bush, mas, infelizmente, não chega aos pés das saudosas aventuras de Asterix boladas por Goscinny, como, por exemplo, Asterix e Cleópatra e O Condomínio dos Deuses (ambas citadas nesta aventura).
Os fãs do baixinho gaulês que se torna superforte ao tomar a poção mágica do druida Panoramix vão se espantar logo de cara porque, desta vez, em vez de enfrentar problemas com romanos ou participar de situações históricas, Asterix, Obelix e companhia irão se deparar com, entre outros, extraterrestres, naves espaciais e clones com a cara do Arnold Schwarzennegger que vem nos modelos Super-Homem, Homem-Morcego e Homem-Aranha… Vista sem nenhum contexto, é uma HQ sem pé nem cabeça.
Mas os leitores mais atentos identificarão na aventura duas metáforas. Tudo começa quando em um dia qualquer a aldeia de Asterix é invadida por uma nave espacial comandada por um ser que mais parece o teletubbie Tinkie Winkie, mas que, visto de perto, é um Mickey Mouse sem nariz e orelhas grandes (as luvas e os botões dão grande referência e em alguns quadros, em especial quando ao alienígena fica preto, é fácil enxergar o camundongo).
O nome da criatura é Tun Car (anagrama de cartun, ou cartoon, ou seja, desenho animado). Ele vem do planeta Walneydist (anagrama de Walt Disney, o gênio dos quadrinhos americanos) e traz em sua nave superclones vestidos de super-homem e que têm a cara de Schwarzenneger, que são a polícia do sistema estelar dele.
Tun Car, ou Roxinho, como é chamado pelos gauleses em uma tradução pouco feliz, vem avisar da invasão dos poderosos Nagmas (anagrama de Mangá), vindos do planeta Gnama (outro anagrama de mangá).
Com efeito, logo chega outro alienígena, em uma nave estilo robô japonês, que luta karatê, fala com “sotaque japonês” e quando encontra Obelix agradece ao grande Akoaotaki – mais um anagrama: de Takao Aoki, autor do famoso mangá/desenho animado japonês Beyblade. No decorrer da história, tanto mangá quanto quadrinho ocidental americano se declaram igualmente poderosos e revelam que querem a fórmula mágica do druida, ou seja, o segredo dos quadrinhos europeus.
Mas esta é só a primeiro e mais fácil metáfora. Para identificar a segunda é preciso ficar de olho no tal “Roxinho”. Ele diz que vem de uma galáxia de 50 estrelas (as da bandeira americana) onde todos são iguais e mais fáceis de identificar (uma crítica a cultura unificadora americana). Conta que o sábio que comanda sua galáxia chama Hubs (adinhe, outro anagrama…de Bush) e seus superclones são a cara do ator-governador republicano da Califórnia.
E, em determinado momento, revela que veio para, por precaução, confiscar a arma dos gauleses para impedir seu mau uso – qualquer semelhança com a política Bush não é mera semelhança. “Até mesmo eu me surpreendi, pois Goscinny e eu nunca pensamos em colocar Asterix na política, mas algumas coisas do governo Bush me levaram a isso”, diz Uderzo.
O desenhista incluiu ainda diversas outras referências a hábitos estadunidenses, mas, paródias a parte, a pergunta que os fãs fazem é: O Dia em Que o Céu Caiu faz jus a saga de Asterix? Cada um deve ler para chegar a própria conclusão, mas os fatos inegáveis são que, se por um lado a sátira e a metáfora fazem esta aventura valer a pena (motivo pelo qual na França a aventura vendeu mais que o bestseller Harry Potter…), por outro o argumento é mais fraco que as aventuras que eram feitas em dupla com Goscinny.
Ou seja, é essencial para fãs e para quem quer se apreciar uma boa crítica política e ótimos desenhos, mas se o negócio é ver Asterix em plena forma, prefira reler os títulos da coleção que Goscinny escreveu, como Asterix, o Legionário ou O Combate dos Chefes.
Homenagem a Walt Disney
Apesar de utilizar o personagem Tun Car para criticar George Bush e suas políticas de governo, e de deixar claro que tanto o alienígena roxo quanto o japonês são igualmente danosos para os gauleses, Uderzo diz, na última página de O Dia em Que o Céu Caiu, que o álbum é uma homenagem a Walt Disney.
Nas palavras do desenhista, Disney foi “um célebre e extraordinário druida, que permitiu que alguns colegas e eu mergulhássemos no caldeirão de uma poção cujo grande segredo só ele conhecia.”
O curioso é que, mais do que uma homenagem, a frase é uma capitulação. Afinal, quando no longínquo outubro de 1959 os franceses Albert Uderzo e René Goscinny foram procurados pelo publisher François Clotaud com a proposta de criarem uma história em quadrinhos francesa para crianças, a ideia era justamente desbancar o tal druida estadunidense.
A maior parte da garotada francesa, na época, lia apenas quadrinhos made in USA e Clotaud conclamou os dois amigos a fazerem algo que mudassem aquele quadro. A idéia original da dupla Uderzo e Goscinny era, inclusive, reutilizar uma história francesa tradicional, de Roman de Renart, que trazia animais como personagens, “mostrando que Walt Disney não criou este estilo.
Um livro permanece inédito no Brasil
O Dia em Que o Céu Caiu é o 32º título da coleção Asterix lançado no Brasil. No mundo, no entanto, é o 33º. Por motivos não explicados, nem a Editora Record nem qualquer outra publicadora nacional lançaram por aqui Asterix e o Regresso dos Gauleses (em inglês, A Class Act), álbum distribuído para o resto do mundo em 2003.
Neste livro inédito – me com mais páginas que todos os demais álbuns – estão 14 histórias inéditas, a maioria de autoria da dupla Uderzo e Goscinny, algumas apenas de Uderzo.
Entre elas, uma HQ conta a história do Galo que desperta a aldeia gaulesa diariamente e outra mostra cenas inéditas do nascimento de Asterix (nesta aventura, por sinal, aparecem pela primeira vez os pais de Asterix e Obelix, que aqui no Brasil foram vistos por enquanto apenas em Asterix e la Traviata).
- Nota da redação: em data posterior a este texto, o quadrinho “esquecido” foi publicado no Brasil e o Dia em que o Céu Caiu passou a ser considerado o de número 33 na coleção de edições de Asterix, o Gaulês.
Comentar