Zumbis não são novidade nas histórias em quadrinhos. Das HQs de terror surgidas já nos anos de 1930 – com influência direta das chamadas Pulp Magazines – à versão herois-zumbis da Marvel, passando pelos gibis do popular The Walking Dead (surgidos em 2003) e até mesmo quadrinhos de terror de Archie, os mortos-vivos estão em todo lugar. Mas até agora nunca havia se visto zumbis como os criados pelo quadrinista brasileiro Leandro Assis para a série A hora dos acordados, lançada por ele no Instagram.
Leandro é conhecido pelas (ótimas) séries Os Santos e Confinada, lançadas em parceria com Triscila Oliveira em 2019 também via Instagram. Mais de 800 mil pessoas acompanhavam as tiras virtuais – posteriormente lançadas em livros pela Editora Todavia.
As séries, que se convergiam/derivavam uma da outra, mostravam – com altas doses de realismo (e rascismo, preconceito, discriminação) – as diferentes realidades de pessoas pretas da periferia e brancas mais abastadas. Em especial por meio de uma família bem de vida de um cartorário corrupto (de sobrenome Santos, daí a bem bolada brincadeira com o nome da HQ) e da família preta que prestava serviços domésticos ao sujeito e aos descendentes dele.
No caso específico de Confinada – que em virtude do tema tomou o lugar dOs Santos nas publicações do Insta por um tempo – era mostrado ainda como os extratos sociais diferentes impactaram diretamente na forma das pessoas enfrentarem a pandemia de Covid-19 (com muitas doses de uma hipocrisia revoltante por parte dos patrões ricos retratados nas tiras).
Toda essa dialética se mostra presente mais uma vez em A hora dos acordados, por meio de uma metáfora bem sacada. Zumbis começam a aparecer pelas ruas de todas as cidades brasileiras, porém em um primeiro momento ninguém nota, ou melhor, as pessoas ignoram. Acham que se trata de mendigos, maltrapilhos, e a reação imediata é “que esse país vai de mal a pior”.
Aos poucos, Leandro Assis vai introduzindo nas histórias, assim como fez nOs Santos e Confinados, estereótipos da sociedade extremamente reais. De personagens bilionários que se preocupam mais em conseguir dinheiro a qualquer custo a pessoas de classe média que defendem os bilionários e acham que os vulneráveis estão naquela situação “porque não gostam de trabalhar.”
E também “pessoas comuns”, que vão vivendo os dramas do dia a dia enquanto os zumbis se multiplicam. A maioria absoluta dos personagens, porém, ou ignora ou reclama que o governo deveria “dar um jeito” na horda de mendigos, sem perceber que são zumbis.
Entre os personagens estão cinco famílias bilionárias que vivem em um prédio moderno e sofisticado na orla do Leblon, no Rio de Janeiro – onde fica o metro quadrado mais caro do Brasil. Servidos por empregadas domésticas, motoristas, porteiros e segurança armada, levam vidas de luxo e privilégios. “Até o dia em que os mortos decidem acordar. E, de uma hora pra outra, os bilionários precisam deixar o lucro de lado e lutar pela própria sobrevivência”, descreve Leandro.
O MundoHQ entrou em contato com o autor para saber um pouco mais sobre essa série/metáfora apocalíptica. Confira, a seguir, o bate-papo exclusivo com Leandro Assis, e clique aqui para conferir a nova série no Instagram do quadrinista.
MundoHQ – Nessa nova série mais uma vez você aborda a questão da luta de classes, mas com um viés mais metafórico e muito interessante. Qual sua relação com o tema?
Leandro Assis – Acho que todo mundo que conta histórias tem seus critérios para escolher as histórias que quer contar. O (cineasta) Jorge Furtado diz que ele parte de um incômodo com algo que ele vê no mundo, e que tem vontade de compartilhar esse incômodo com as pessoas. Eu sinto que comigo é meio por aí. A desigualdade me incomoda, então tende a ser um assunto recorrente para mim.
Apesar de muito bem-feita, tive a impressão que sua adaptação do “Toda a nudez será castigada” não atraiu tanto público quanto Os Santos e Confinada. Você também teve essa impressão?
Acho complicado fazer essa comparação. Os Santos e Confinada aconteceram em um contexto muito particular: governo Bolsonaro e pandemia. Esses trabalhos eram a minha forma de reação àquela onda de extrema direita. E essas séries acabaram encontrando muitos leitores que estavam vivendo o mesmo incômodo que eu. Além disso, a pandemia trancou as pessoas em casa, sem ter muito o que fazer. O pessoal tinha tempo pra ficar no Instagram. Portanto, não acho que Toda Nudez tenha gerado menos interesse por características da obra. O momento é outro.
A comparação das pessoas desamparadas e vulneráveis com zumbis (e o fato de os demais sequer repararem o fato em si) é genial. Como você chegou a essa ideia?
Não acho que tenha sido um insight especial. Foi um desdobramento natural do projeto: apocalipse zumbi com luta de classes. A medida que fui imaginando a história, pensando como os zumbis surgiriam, essa situação me ocorreu.
Você cita a frase do livro Realismo Capitalista, do Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Você leu o livro? A citação se encaixa com perfeição na sua proposta, mas fora isso haverá alguma relação entre as obras?
Sim, li o livro do Mark Fisher. E ele foi decisivo para esse trabalho. Eu estava pensando na próxima série, queria fazer alguma coisa de terror, mas não tinha um tema. Então lembrei da frase do Mark Fisher e decidi pelo apocalipse zumbi. A ideia da série é justamente questionar se vamos precisar esperar o fim do mundo para ver o fim do capitalismo.
Aliás, mudando de fonte, você leu ou assistiu a The Walking Dead? Seria esse quadrinho ou série também uma eventual fonte de inspiração?
Eu vi a série. Gosto muito. Li pouco dos quadrinhos. Pretendo retomar a leitura, mas ainda tenho muita pesquisa para fazer.
Tanto nos Santos quanto em Confinada, havia um certo maniqueísmo – creio que proposital, caricatural -em relação aos grupos sociais. Para enfatizar alguns pontos da história, na minha opinião (e fique à vontade para discordar), o núcleo elitista era mostrado como mal, inconsequente ou, no melhor dos casos, sem consciência ou empatia pelos semelhantes. Já o núcleo mais pobre, com algumas exceções, era mais nobre e batalhador. Essa linha vai ser mantida nesta HQ?
Entendo essa leitura do maniqueísmo. Como eu já comentei, Os Santos e Confinada foram trabalhos de um momento bem específico. Eu vejo essas duas séries como um híbrido entre entretenimento e ativismo político. E sempre que eu tinha que escolher entre privilegiar a dramaturgia ou o ativismo, eu escolhia o ativismo. Foi uma decisão tomada desde o início. A ideia era não “dar munição para o inimigo”. Eu não queria que nenhuma página, quadro ou fala das séries pudessem ser usadas pelos haters ou pessoal de extrema direita para deturpar o que estávamos falando. Por exemplo, em Os Santos há a personagem Manu, a filha dos Santos. Ela é anti Bolsonarista, de esquerda e consciente das desigualdades do Brasil. Os leitores logo assumiram que ela iria ajudar a família das empregadas domésticas. E, talvez, ir por esse caminho gerasse boas cenas e muitos conflitos da Manu com a família. Mas retratá-la como uma espécie de salvadora branca seria uma traição ao espírito antirracista da série. Sobre A Hora dos Acordados, eu diria que vai ser um pouco diferente. Mas não muito. Ainda vejo essa série com um forte posicionamento político.
A ideia das pessoas ricas tentarem se isolar me lembrou a série Contágio, de Batman (que é anterior ao Covid), onde um grupo de bilionários de Gotham se tranca em um prédio achando que estaria a salvo de um vírus mortal – e tudo dá terrivelmente errado pra eles, claro. Você se inspirou em algum fato, real ou não, pra propor na sua HQ este tipo de ação?
Eu nunca li essa HQ do Batman. Vou procurar.
Aliás, uma curiosidade: por que o prédio das famílias bilionárias fica no Leblon? Você já mostrou cenas dos zumbis em todo o país, há alguma razão específica pra “resistência” dos bilionários ser no Rio de Janeiro? Ou haverá outros focos?
Assim como o livro foi decisivo para o trabalho, o prédio da história também foi fundamental. Ele é inspirado em um prédio real que foi lançado no ano passado no Leblon. O vídeo do lançamento do empreendimento parecia uma sátira de tão absurdo. Então essa foi a fórmula: Terror + Mark Fisher + prédio do Leblon = A hora dos acordados (risos).
Você já tem ideia de quantos episódios/posts a série é composta? Ou vai tocar “de orelha” conforme for desenvolvendo?
Eu sei para onde a série vai. Não tenho ideia quanto tempo vai levar pra chegar lá (risos).
Por fim, uma pergunta sobre desenho: gostei muito dos seus zumbis, em especial do humor que você trouxe nos teasers iniciais, com a mulher zumbi de biquini na praia e os zumbis de capacete de ciclismo. Como você desenvolveu o traço dos seus mortos vivos? Foi buscar inspiração em outros desenhos ou saiu do zero?
Opa! Valeu! Eu fiz esses teasers justamente para experimentar desenhar os zumbis. Esses teasers são uma pequena homenagem aos filmes do George Romero. Em seus filmes, ele costumava colocar zumbis com profissões muito específicas. Sempre achei divertido identificar as profissões dos zumbis. A ideia nos teasers era fazer isso, com uma pitada de crítica social.
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