Sonhos e letras
Entre 1988 e 1996, milhões pessoas se renderam a uma história em quadrinhos chamada The Sandman. Misturando mitologia, lendas, magia, horror e centenas de referências literárias, que não pouparam sequer William Shakeaspeare, cada um dos 75 fascículos da HQ criada pelo inglês Neil Gaiman chegou a vender 2 milhões de exemplares anualmente. O sucesso da série garantiu fama, fortuna e dezenas de prêmios a Gaiman, entre os quais o World Fantasy Award, que até então era dado apenas a livros de fantasia. Sandman, porém, foi considerado como literatura em quadrinhos. Hoje, cinco anos depois do final da HQ, o universo de Sandman fez o caminho inverso e se tornou livro. Um bom livro.
Sandman, O Livro dos Sonhos foi lançado (pela editora Conrad) oficialmente no Brasil durante a Bienal do Livro, realizada no Rio de Janeiro. Gaiman veio para o lançamento, autografou edições para fãs incansáveis que esperaram até seis horas em filas imensas – tanto na capital carioca quanto na paulista – e concedeu dezenas de entrevistas, nas quais perguntou-se de tudo. Menos sobre o livro. Fãs e jornalistas estavam mais interessados em discutir a morte do Senhor dos Sonhos, os novos trabalhos em quadrinhos do autor e sua recente briga com o também quadrinista Todd McFarlane, autor de Spawn (leia mais sobre isso na entrevista exclusiva que ele deu para gente… também somos filhos de Deus).
Uma pena, já que O Livro dos Sonhos é uma boa leitura para quem gosta de ficção e fantasia, e uma leitura imperdível para quem gostava de Sandman. Em primeiro lugar é preciso deixar claro que Gaiman não escreveu nada no livro: apenas (!) organizou contos de alguns dos mais conceituados autores de terror e fantasia da atualidade que versam, de alguma maneira, sobre o universo criado por ele. Entre os autores estão desde figurinhas carimbadas da ficção científica televisiva, como Bárbara Humbly (que adaptou A Bela e a Fera para a telinha e escreveu diversos episódios de Guerra nas Estrelas), ao professor de inglês e crítico literário californiano Frank McConnell, passando por escritores de fantasia premiadíssimos como Lisa Goldstein e John Ford.
Curiosamente, o nome mais conhecido dos brasileiros é justamente o de um autor que não escreve um conto no livro e sim contribui com uma ilustração: Clive Barker, que tem vários livros de terror publicados por aqui e é o autor do thriller Hellraiser. Ainda assim, nenhum fã de um bom conto fantástico vai se decepcionar com o livro.
Para gostar das nove histórias que a obra traz (o original americano tinha mais nove contos, que a Conrad deve publicar em um segundo tomo) não é preciso conhecer os personagens de Sandman, mas o leitor que tiver intimidade com a HQ vai desfrutar melhor da leitura. Os contos não são necessariamente sobre o personagem principal (Sandman, o senhor dos sonhos) nem tem qualquer pretensão de serem inseridos na cronologia do personagem. Trata-se de histórias que ocorreram envolvendo tanto Sonho quanto seus outros irmãos conceituais (Destino, Destruição, Desespero, Delírio e em especial Morte e Desejo, aí ao lado) além de outros personagens do reino do sonhar, como os irmãos bíblicos Cain (acima, com a faca na mão) e Abel, a gárgula Goldie, o bibliotecário Lucien e muitos outros.
Por isso mesmo uma certa familiaridade com os personagens torna a leitura mais prazeirosa. É impossível, por exemplo, não querer reler a edição 14 da revista (Os Colecionadores – Casa de Bonecas) depois de terminar o instigante conto Derramamento (de Will Shetterly), que se passa justamente dentro da convenção de psicopatas mostrada no gibi. Mas nem por isso quem não leu a HQ vai deixar de ter arrepios…
Da mesma maneira, em Sete Noites da Terra do Sono, os leitores que conhecerem os irmãos de Morpheus apreciarão bem mais a bela homenagem feita por George Effinger a outro personagem histórico de quadrinhos envolvendo sonhos dos quais os fãs de HQs mais antigos se lembrarão muito bem: Little Nemo (de Windsor McCay).
Já o delicioso O Dia do Nascimento não tem aparentemente nenhuma necessidade da HQ em si. Nele a romancista B.W. Clough conta como uma garota pré-histórica sonha com uma invenção que vai revolucionar a humanidade e o Deus dos Sonhos, temendo o pior, tenta convencê-la a abandonar sua visão.
Enfim, os contos têm em comum os fatos de dividirem o universo onírico criado por Gaiman e de serem muito bem escritos (e traduzidos). Os quadrinhos de Gaiman, com certeza, eram bem melhores que o livro, que está sendo vendido a R$ 21,00. Mas a homenagem literária aos personagens do quadrinista também é capaz de gerar bons sonhos… e alguns pesadelos.
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