A história do Capitão Marvel atraiu e atrai milhares de leitores desde a criação do personagem, em 1940. Mas faltava alguma coisa e nada como um bom mago para resolver o problema: se a saga do menino Billy Batson era atraente do modo como foi concebida por C.C.Beck, o toque do cartunista Jeff Smith levou a história um passo além e a deixou encantadora.
Em Shazam! & a Sociedade de Monstros, Smith reconta a origem do personagem como está acostumado: com humor, delicadeza e seu conhecido traço –e timing – que remetem aos desenhos animados. O resultado é um daqueles poucos, porém famosos, gibis para todas as idades.
Jeff Smith, para quem não sabe, ficou conhecido por ter criado a série Bone, em 1991. Misturando três primos narigudos de uma raça estranha (lembrando remotamente uma cruza de Pogo com Shmoo) com animaizinhos e seres humanos em uma aventura no estilo espada e magia, o cartunista criou uma odisseia que durou 60 edições e, quando chegou ao fim em 2004, tinha arrebatado dez prêmios Eisner, onze Harvey e milhões de fãs em dezenas de países.
Com esta bagagem toda, não seria de se esperar menos deste Shazam – que, cabe informar, começou a ser desenvolvido por ele em 2003, um ano antes de Bone chegar ao fim.
O projeto com o Capitão Marvel, de quem Smith declaradamente é fã, levou quatro anos para ser finalizado e, apesar de sido lançado nos EUA em 2007, dividido em quatro partes, levou mais de sete anos para chegar ao Brasil. Por aqui, foi lançado pela Panini em um único e bem tratado encadernado de 208 páginas (o preço varia entre R$ 19,90 e R$ 27,90 dependendo do local de venda) e que, ainda que tenha sido planejado para 2014, só chegou na maioria das bancas e livrarias nos primeiros meses de 2015.
E de maneira bem discreta, infelizmente, pois Marvel tem muitos fãs por aqui e a obra, sem dúvida, merece um lugar na estante…depois de lida e relida devidamente.
A história em si parte da mesma premissa estabelecida pelo criador Beck: Billy Batson é um garoto órfão crescendo nas ruas, filho de um casal de arqueólogos dado como morto junto com a irmã mais nova do garoto. Até que, por uma série de circunstâncias, o menino é levado a um mago chamado Shazam, que lhe concede super-poderes derivados dos deuses que formam seu nome: a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, a resistência de Atlas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio.
Um bom contador de histórias, contudo, é o que sabe tornar a história melhor, e Smith é dos melhores. Para início de conversa, ele concretiza uma ideia citada em outras obras (como em Kingdom Come), mas não levada ao pé da letra até então: Billy e o Capitão Marvel não são a mesma pessoa. O garoto não se transforma nele e sim dá lugar ao homem super-poderoso e é mandado para um universo paralelo no qual consegue partilhar o que Marvel vê e sente.
O próprio Marvel é uma espécie de totem da humanidade que surge sempre que as forças do mal – os famosos sete pecados da humanidade representados na caverna do mago – se insurgem e conserva memórias mais antigas, a princípio ainda um pouco nebulosas.
Isso explica, entre outras coisas, porque o Capitão age como um adulto e não como uma criança com acesso à sabedoria de Salomão (o que quer que isso significasse) e ainda gera boas piadas nas mãos do autor. A cena, por exemplo, em que o Capitão Marvel conclui que o cachorro-quente foi uma das principais conquistas evolutivas da humanidade nos últimos séculos é hilária, ainda que possível e tristemente verdadeira…
Assim sendo, Billy Batson continua sendo uma criança curiosa e, ao ser levado para conhecer a Pedra da Eternidade por Marvel (pois no universo mágico paralelo os dois coexistem) acaba indo onde não devia e trazendo para a Terra uma ameaça monstruosa, literalmente.
Crocodilos e outras criaturas temerosas que falam começam a surgir na cidade em busca de revanche contra seres humanos e, além deles, criaturas gigantescas aparecem no meio do parque avisando que acabarão com tudo.
Elas dizem que obedecem ao senhor Cérebro, e mais uma vez eis aí a genialidade de Smith: não só ele fez com que Marvel tenha sido responsável pela criação de sua nêmesis como ainda criou um argumento que explica o surgimento do inimigo dentro da história.
Em paralelo, um ambicioso secretário de segurança dos EUA – que atende pelo nome de dr. Silvana – está fazendo de tudo para resolver a situação. Para o bem dele, claro. O maquiavélico homenzinho diz que quer proteger o país quando, na verdade, identifica nos gigantescos monstros armas de guerra (e guerra gera muitos lucros, claro), além de ter outra agenda secreta a ser descoberta no decorrer da HQ.
Sem revelar muitos mistérios ao leitor, Smith ainda traz para a HQ o Sr. Malhado, aquele tigre protetor da família Marvel, mas dando a ele forma diferente (ou formas, para ser exato) e uma explicação, digamos, mais mitológica e adequada à narrativa. E Mary Marvel, a irmãzinha de Billy, também aparece já nesta origem.
Primeiro, apaixonada pelo Capitão. Logo a seguir, porém, não só descobre os poderes dele como acaba partilhando-os. E, se isso também acontecia na história original, eis aqui um diferencial criado por Smith que muda bem a coisa toda: esta Mary realmente recebe poderes em vez de trocar de lugar com uma entidade, logo, mantém-se com a mesma idade. Ou seja, surge uma menininha impulsiva, superpoderosa e às vezes um tanto irritante para apimentar a aventura.
Pra terminar, some a tudo isso alguns milhões de baratas e lembre-se que tudo isso foi desenhado com a arte soberba de Smith. O resultado não poderia ser diferente de uma HQ inesquecível que, aliás, pode ser lida tanto por fãs quanto por quem não conhece e quer conhecer pela primeira vez o personagem.
Em tempo: talvez tenha sido a pedido da editora, talvez tenha sido um desejo autoral, mas quem já leu Bone vai encontrar diversas referências da obra-prima de Jeff Smith distribuídas em Shazam! & a Sociedade dos Monstros. Entre outras, Billy Batson usa a famosa camisa de estrela de Phoney Bone, um dos crocodilos vilões segura exatamente o mesmo bastão de Kingdok (depois pego por Fone Bone) e os olhos das colossais criaturas que surgem no parque são exatamente iguais aos das ratcreatures. Uma atração a mais para quem quer matar as saudades do universo mais famoso do autor.
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