Reza a lenda que, no mundo do futebol, há jogadores que têm certidões cujas datas de nascimento não correspondem às reais, de modo que o atleta pode se passar por mais novo do que realmente é entrar em disputas que seriam restritas a pessoas mais jovens. Esses jogadores que são mais velhos do que realmente dizem ser recebem a alcunha de “gato”. Pois no mundo dos quadrinhos, quem diria? A maravilhosa Mafalda, personagem criada pelo genial cartunista argentino Quino, é gato!
Explica-se: Mafalda foi criada antes de nascer. Confuso? Nem tanto. Quino criou a personagem em 15 de março de 1962, o que levou a mídia e fãs de vários cantos do mundo a comemorarem neste mês os 50 anos de vida da menina. Mafalda, que tem inúmeras tiras criticando o capitalismo selvagem, foi ironicamente criada por ele: o autor recebeu encomenda da marca de eletrodomésticos Mansfield para criar uma mascote que seria utilizada em uma campanha publicitária.
A tal mascote, inclusive, deveria ter o nome iniciado pela letra “M”, de modo a reforçar de maneira discreta a identificação com a marca. Quino, então, criou sua enfant terrible para estrear a campanha que, por um daqueles acasos do destino, acabou não sendo realizada. Dois anos depois, em 29 de setembro de 1964, o autor publicou as primeiras tiras estreladas pela personagem na revista Primera Plana.
O argentino, que nunca escondeu de ninguém o arrependimento por ter criado uma personagem para vender eletrodomésticos (“Nunca faria isso de novo”), considera então – com uma certa dose de razão – que Mafalda efetivamente nasceu em 1964. O autor inclusive publicou neste mês de março uma nota em seu site oficial (www.quino.com.ar) na qual reforça que qualquer outro cálculo que não leve em consideração a data de 1964 é “incorreto” (a cronologia oficial da carreira de Quino no site, por sinal, nem cita a criação para a Mansfield).
É curioso que haja polêmica em torno da idade de uma personagem cuja mordacidade não envelhece. Criadas em uma época em que o mundo – e a Argentina – vivia sob crises ditatoriais e políticas imensas, as tiras de Mafalda nasceram com uma crítica social que sobreviveu a seu próprio tempo. Felizmente para Quino e infelizmente para o mundo.
É triste notar que (quase) meio século depois as tiradas de Mafalda sobre como o homem maltrata o mundo, a lentidão da burocracia governamental, as mazelas autoinfringidas da humanidade e a cultura sendo vencida pela comercialização de produtos na TV permanecem mais atuais do que nunca.
E se hoje já há uma lei (ao menos no Brasil) que proíbe pais de “educarem” com tapas, o cinto do pai de Manolito continua vivo o suficiente para despertar indignação e identificação com o personagem, da mesma maneira que as táticas para vender produtos a qualquer custo continuam existindo e muito. O progenitor do amiguinho de Mafalda com certeza daria vivas à ideia de cobrar por sacolas no supermercado em vez de distribuí-las gratuitamente alegando “tirar o planeta do sufoco” (e mantendo toda a imensa gama de embalagens plásticas que inunda as prateleiras).
Suzanita, que sonhava em crescer e se casar com um homem rico, não só continua tendo seu triste reflexo na sociedade como até ganhou evoluções na figura das maria-chuteiras, apenas para citar um exemplo. E o que dizer das lamúrias, aventuras e desventuras tão comuns à classe média da época e de hoje tão bem ilustradas por Mafalda, os pais da garota, Manolito, a pequena Liberdade, Filipe, Miguelito?
É claro que há elementos datados nas HQs, até mesmo porque hoje seria raro encontrar uma casa onde se houve discos em vez de CDs e DVDs, mas a essência de Mafalda continua mais atual do que nunca. Essência que, vale sempre lembrar, fez com que Mafalda fosse a primeira personagem latino-americana a ganhar o mundo, sem que fossem fazer adaptações ou concessões para isso.
Aliás, pelo contrário: a personalidade polêmica, filosófica e questionadora da personagem – e das tiras de Quino – fizeram com que a Unicef convidasse a turma de Mafalda para ilustrar os direitos da criança. Com todo esse sucesso e unanimidade, uma pergunta sempre é feita: por que Quino parou de desenhar Mafalda?
Lendas a respeito não faltaram. Houve até quem dissesse que houve pressão da “indústria da Sopa” para que isso ocorresse, já que a garota detestava sopa, e existe até um cartum anônimo no México – atribuído a Quino e rechaçado por ele – com um caminhão de sopa atropelando a garota. Bobagem pura.
Até porque a sopa não estava ali como alimento em si, mas sim como um símbolo do governo militar (e eis aqui uma das características boas das tiras de Quino: quem sabe o contexto no qual foram produzidas poderá enxergar mais significados além dos óbvios; quem não sabe irá se divertir do mesmo jeito). “A sopa era só uma alegoria dos governos militares, algo que ela não gostava, mas que tinha que suportar”, diz Quino.
Quando parou de fazer Mafalda, Quino publicamente declarou que não queria se repetir as tiras, o que inevitavelmente aconteceria, na opinião dele, após praticamente uma década fazendo as historietas. A justificativa parece plausível, mas o cartunista continuou fazendo outros trabalhos com crítica social e política sem ter esse problema.
A verdadeira razão teria sido revelada na época apenas em círculos mais íntimos. Em 1963, quando Quino parou de desenhar (as últimas publicações originais ocorreram no ano seguinte), ele já vislumbrava que a situação da Argentina pioraria ainda mais quando Perón não fosse mais presidente e Mafalda não conseguiria continuar fazendo graça de maneira mordaz, porém leve, com o que se sucederia.
Com efeito, Peron morreu em 1974 e sua esposa e vice-presidente – Maria Estela Martinez, a Isabelita – assumiu o poder. A própria cronologia do site de Quino descreve o que ocorre então da seguinte forma: “intensifica-se a ação dos grupos para-militares: torturas, sequestros, desaparecimentos e mortes”.
Com isso o próprio Quino deixaria o país natal pouco depois. “Na época, em 1976, havia muita insegurança, eu tinha muitos amigos que morreram ou desapareceram e, como estar na agenda de alguém era muito perigoso, eu fui embora da Argentina, para Milão”, relembra o quase octogenário autor.
E por que não voltar a desenhar a pequena contestadora? Segundo ele, porque os jovens de hoje estão desiludidos e não querem mudar o mundo para melhor. Uma visão um tanto pessimista, diga-se. Se o mundo piorou em muitos aspectos, também melhorou em muitos outros e é impossível não pensar que mensagens como as que Mafalda transmitiu – e continua transmitindo até hoje nos livros e sites que trazem suas tiras – não contribuíram com isso.
Talvez Quino, ele sim, ande meio desiludido com o mundo. Ou, mais compreensivelmente, não tenha ânimo para voltar a fazer algo que já deixou para trás há mais de três décadas. Para sorte dele e dos leitores, não há sequer razão para isso. Afinal, mesmo com mais ou menos cinquenta anos, as tiras já produzidas de Mafalda continuam encantando e fazendo pensar como sempre.
Em tempo: para quem não leu ou quer rever Mafalda, há várias opções disponíveis no Brasil, a maioria delas editada pela Martins Fontes. Entre elas, destacam-se “10 anos com Mafalda” (R$ 45,00) e “Toda Mafalda” (de R$ 89,98 a R$ 102,50).
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