Um sonho de entrevista
Delfin, especial para o MundoHQ (entrevista realizada em 2001)
Desta vez a minha missão era mais complicada que as demais. O entrevistado era o escritor inglês Neil Richard Gaiman, um escorpiano de 40 anos de idade.
Por ser escorpiano, já fiquei ao mesmo tempo com certo receio e entusiasmo. Ele, simplesmente o autor da obra mais premiada dos quadrinhos dos EUA (e talvez do mundo) até hoje, estaria frente a frente comigo durante um brunch num hotel de luxo próximo à Avenida Paulista, no coração paulistano.
Chegaria ao hotel uma hora antes, para tomar contato com seu livro "Sandman – o livro dos sonhos", lançado aqui no Brasil pela Editora Conrad, que trouxe o escritor ao país para sessões de autógrafos no Rio e em São Paulo. Era respirar fundo, pegar o ônibus em Campinas e pensar, durante a viagem, em ser profissional como sempre. Afinal de contas, era dia 22 de maio. E 22 é o meu número de sorte.
Uma coisa que todos devem ter noção é que de vez em quando é difícil para um jornalista se despir do véu de fã ou tiete. Às vezes não acontece, e isto pode ser terrível. Como pessoa que gosta de quadrinhos bem escritos e bem feitos, é impossível não admirar o trabalho de Neil Gaiman. Mesmo com pouca coisa publicada em terras brasileiras, seu currículo é vasto e brilhante.
Séries como Violent Cases, Mr. Punch, Signal to Noise, Miracleman, marcam uma carreira calcada em boas histórias. Nem tudo foi sucesso desde o início para Gaiman. Afinal, ele já teve que escrever, para juntar grana nos anos 80, uma malfadada biografia para os astros-neo-bregas do Duran Duran.
Como ele mesmo diria no futuro, são duras as coisas que se faz quando se precisa de dinheiro. Para sorte do mundo, ele já pode trabalhar escrevendo apenas sobre o que gosta há muito tempo. Por exemplo, seu novo livro, American Gods (Deuses Americanos), que será lançado em poucas semanas nos EUA, é seu primeiro trabalho sem absolutamente nenhuma colaboração durante sua produção.
E, eu descobriria mais tarde, ele possuía a única cópia existente do livro até a data da realização da entrevista. Que, aliás, atrasou. Explico: chegando ao hotel, relaxado, vestindo o chapéu do jornalista, descubro que o brunch havia se transformado num almoço a ser realizado à uma da tarde. O evento, reunindo uns poucos jornalistas, alguns empresários de quadrinhos e boa parte do staff da Conrad, teve seu cronograma alterado em virtude dos extensos chats realizados por dois provedores paulistanos na noite anterior. Assim, esperei pacientemente. Mas por pouco tempo.
Aproximadamente ao meio-dia, subindo as escadas à minha frente, vinha aquela figura de cabelos meio compridos e toda de preto, já com alguma barriga, mas ainda magro. Lembrava uma versão decadente do Joey Ramone, de jaqueta velha e coturno nos pés. Foi apresentado por Cassius Meduar a diretores da Conrad, com os quais eu conversava. Neil olhou fixo para mim, pois, afinal de contas, quem era eu então? "Oi, sou só um amigo". "E qual é o seu nome?", perguntou Neil. "Sou Delfin", disse. E ele, estendendo sua mão direita, disse calmamente: "Oi, eu sou Neil".
A entrevista só veio a acontecer duas horas depois, após um belo almoço e uma fila de cinco jornalistas. A paciência de Gaiman se mostrava inabalável. Sempre sorrindo, disposto, cordial, dizendo seus "you know" (você sabe) com a mesma freqüência com que se fala "né" e não se negando a responder qualquer pergunta, ele já chegou brincando, realmente pronto para enfrentar meu inglês macarrônico. O que você vai ler agora é a íntegra deste bate-papo, que, entre outras coisas, versou sobre batatas quentes, Todd McFarlane, música, literatura, quadrinhos e, é claro, Sandman. Com vocês,… you know… Neil Gaiman
Delfin – Agora…
Neil Gaiman – Ok. Mas pergunte bem rápido. (falando rápido)
Nããããão,por favor! (risos) Eu tenho que ler as perguntas. É muito difícil para mim.
Não se preocupe
Uma vez você disse algo como: "Uma boa história é uma questão de saber onde pará-la". A morte do Sandman, como o conhecemos, foi boa para a história?
Sim. Oh, bastante! That was what the story was all always, always going to be about. Eu era a única pessoa que sabia disso porque esta é a graça de escrever uma série de ficção. Mas isso sempre era pra ser a história de alguém que era essencialmente um suicida. É a história de alguém que era para estar apenas pronto para mudar muito, e eu construí. Eu me lembro do Sandman número 46, no meio de ‘Vidas Breves’, e existe um ponto lá, ao longo da edição (e até aquele ponto eu poderia ter mudado de idéia) que diz: ‘Ok, vamos começar com ele agora. Oh, vamos procurar por Destruição’, diz Delírio, depois deles já terem estado divididos uma vez. E então Sandman volta atrás e diz ‘Está bem, vamos fazer isto’. E assim eles vão…o resto é história. Tudo agora era inevitável. E ninguém sabia a não ser eu. Você sabe, é como um truque com cartas, e eu apenas joguei minha última carta, mas ninguém sabia que ela estava apenas virada, ninguém sabia que o truque agora já tinha sido feito. E agora era tocar outras trinta edições para que todo mundo visse o que aconteceria.
Tenho um amigo (DJota Carvalho) que diz que cada número de Sandman é um tipo de metáfora do universo dos quadrinhos, do universo dos super-heróis, por causa da vida e da morte dos personagens, da finitude deles.
Bem, isso era definitivo, este nível definido quando criamos algo como Sandman. Você sempre está jogando um jogo decisivo de expectativas. Eu amo o fato que em Sandman ‘se eu mato alguém ele continua morto’. Durante toda a série, pessoas foram mortas, pessoas ficavam mortas, porque nos quadrinhos todo mundo volta. Eu gostava do fato de que, quando eles morriam, eram trocados por alguém parecido com eles, num uniforme não muito diferente. Porque isto é o Sandman… isto é… Isto são os quadrinhos, mas estava tentando dar àquele ideal dos quadrinhos que passamos algum sentido real.
Com Sandman e Livros da Magia, você virou uma espécie de mentor do universo místico DC-Vertigo…
Me desculpe por isso, eu acho.
Mas… você se sente ligado a este universo… não apenas pelo dinheiro?
Eu definitivamente… sabe, porque… Me sinto gentilmente como um padrinho ou algo do tipo, eu… Sabe, Alan Moore veio antes de mim, e Alan Moore realmente definiu muito do conteúdo com coisas que eu certamente tirei proveito e construiu um mundo que funciona e criou todas as coisas mágicas. Eu ainda não sei… exste um nível que não é intencional, eu nunca vi Sandman como algo que pudesse se subdividir em duzentos quadrinhos. Quando Livros da Magia (a série mensal) foi cancelada e o quão de quarta categorias foram essas coisas. Eu poderia estabelecer Vertigo como um estilo editorial, e eu ainda não estou certo se isso é algo bom ou ruim a ser feito.
As novas séries… A continuação de sua criação foi ficando pior, pior, pior, até o cancelamento dos títulos… Isso dói?
Oh, sim, digo, com The Dreaming – O Reino do Sonhar (que publicado no Brasil por Tudo em Quadrinhos e Atitude), eu não sei porque eles fizeram o que eles fizeram. Todo mundo queria parar no número 50. Mas estava vendendo. E isso foi estranho, eles disseram ‘Deixe parar no número 50. Está vendendo em malditos 50 edições, vamos chamar isso de uma obra completa’. Então de repente eles foram… quando chegamos ao 50, disseram ‘Vamos voltar atrás e deixar rolar’. Este foi realmente o momento onde as vendas foram ficando seletivas por pessoas que chegaram nos últimos dez números como que achando ‘O que é que está acontecendo agora?’ E… Caitlín (R. Kiernan, escritora de The Dreaming) já estava muito cansada então de repente hesitou e começou tudo de novo. Mas me agrada… A coisa com que estou mais feliz é Lucifer (Sandman Apresenta: Lucifer, que teve uma edição publicada pela Brainstore no país), pois eu sinto que ele é realmente um grande gibi.
Muitos amigos perdidos…
Não é sobre Sandman e aquele mundo, e assim por diante sem parar, é como… algo que eu gosto de ler, então eu leio… e não há muitos quadrinhos por aí que eu gosto de ficar lendo. Então estou muito agradecido por este em particular.
Você lê muitos quadrinhos? Você tem tempo para ler quadrinhos?
Não tenho tanto tempo quanto eu gostaria, e o que assusta é se… Quando estou fora, por vezes os livros da DC, quadrinhos da Dark Horse, chegam. E se não dou uma olhada neles imediatamente, eu posso nunca pegá-los, o que é realmente triste. Isto porque existe muito tempo em um dia…
Você falou sobre Alan Moore. Você acha que os direitos do Miracleman, que foram dados a você por Moore, foram uma espécie de presente de grego?
Sim! Sim, eu, eu… Olhando pra trás, realmente foi como, você sabe… Sou muito orgulhoso do Miracleman de muitos modos apenas por poder escrever algumas histórias realmente muito boas, e eu sou muito, muito orgulhoso deste personagem. Mark (Buckingham, desenhista de Miracleman em suas últimas edições) e eu fomos trapaceados pela Eclipse… Ahn… Consistentemente a Eclipse viria a quebrar porque se descobriu que ela trapaceou com todas as coisas.
E então você tem todo o problema com Todd McFarlane.
Todd McFarlane é muito, muito estranho. Ele chegou clamando pelo poder dos direitos dos criadores e todas as coisas legais e então se tornou a primeira companhia de quadrinhos a não pagar royalties. Você sabe, Todd não paga royalties, Todd não dá qualquer declaração.
Você sabe da capa de Hellspawn #13 (em que aparece pela primeira vez o uniforme do Miracleman num quadrinho de Todd McFarlane)?
Eu não vi ainda, mas eu sei sobre isto. Isto me deixa muito triste.
Ele tem os direitos de publicar isto?
Eu não sei, eu não acho e, de repente… Eu tenho um terço do Miracleman. Mas Buckingham tem um livro só sobre isto…
Ok!
… Licenciamento ou algo assim. Mas Todd é… Todd é um encrenqueiro, Todd é um homem que pagou 3 milhões de dólares por uma bola de beisebol. Seu valor era cem mil dólares. E sua atitude é ‘Eu sou grande o suficiente, então eu posso fazer isso. E se você quiser vir me processar, eu tenho advogados maiores’. O que eu acho uma atitude realmente estranha, é como… você sabe, não é… não é uma atitude de um adulto.
Explique uma coisa pra mim, que eu nunca entendi… Quando Moore deu os direitos pra você, ele deu os direitos, mas… e os direitos de Gary Leach…
Não, os direitos de Gary Leach, Dez Skinn foram para a Eclipse.
Oh! Eles venderam para a Eclipse.
Então a Eclipse tinha dois terços dos direitos do Miracleman, Alan Moore tinha um terço. Alan deu seu terço para mim e Mark Buckingham. E os direitos originais do criador do Miracleman, acho que é…
Mick Anglo.
Mick Anglo, isso. Eu não sei o que aconteceu com isso. Como Alan diz, é um lindo veneno para nos matar. Estranho…
Existe uma editora brasileira que vai publicar "The last temptation", obra sua com Alice Cooper…
Sim!
Você foi ex-repórter da… Rolling Stone?
Não, de várias revistas inglesas, (porém) nunca fiz nada para a Rolling Stone. Mas você tem várias conexões com o mundo da música.
Isto influencia seu trabalho de que modo?
Eu não sei, é difícil dizer, a música sempre está junto comigo em tudo que eu faço. Uma música silenciosa, de certo modo. E eu ainda escrevo canções, ainda tento novas músicas. A maior parte de American Gods é pegar todas as permissões para publicação de letras de vários artistas (por exemplo, Tom Waits). Sempre olho para as canções que se desenrolam durante American Gods. E você tem que pedir as permissões de uso para chegar a (usar) elas.
É seu primeiro trabalho solitário, sem colaborações. Existe algum tipo de recompensa nisso ou você sentiu falta da troca e da soma de informações que normalmente acontecem em outros trabalhos seus, com outras pessoas?
Eu acho que a coisa da qual mais senti falta foi justamente o fato de ninguém estar lendo aquilo. Porque normalmente, quando eu faço qualquer coisa, existe pelo menos um leitor. Em Neverwhere eu escrevi os roteiros, então tinha um monte de gente lendo os roteiros que eu fiz. Então, com American Gods eu sentei e escrevi… Eu escrevi um romance de 500 páginas. Então, é como se ninguém mais estivesse lendo. Os meses passavam, as semanas passavam, e afinal os anos passavam, pessoas passando, qual o sentido disto? Se não vemos nada disto por um tempo, talvez isto não funcione, mas eu não sei mesmo o que isto significa.
Por causa disto você escreveu o B-Log (diário digital on-line)?
O B-Log foi criado na primeira vez que o livro foi entregue porque… Penso que isto é… muito interessante. Mas ninguém realmente sabe, a não ser os escritores, o que acontece entre a entrega de um livro e a publicação dele. Muitas pessoas pensam nisto. Mas seu tipo de pensamento é: ‘Oh, um escritor entrega um livro, então o que ele gostaria de fazer é a festa de lançamento’. E meses depois, no entanto, é o livro, ele segurando o livro em suas mãos (diz ele, segurando a única cópia existente de American Gods até o dia da entrevista). Ninguém sabe, mas é demais parar o que se está fazendo entre os lançamentos. Então este é o verdadeiro motivo de eu ter precisado descarregar o b-log, eu gostei particularmente de coisas como explicar como é revisar tudo, como é o processo da assinatura (de contrato), então é isso… Isto é um tipo de… registro público. E você não sabe nem ao menos quem lê! Isto é estranho. Fiz isso e no primeiro mês eu disse: ‘Tem alguém lendo isto aqui?’ E então me responderam (os provedores do site Blogger) e me disseram: ‘Nós podemos contar algo como 5000 hits’. E no próximo mês, eu disse: ‘Tem alguém lendo isto aqui?’ e eles disseram: ‘Computamos mais ou menos 20000 hits individuais’. Achei bom, vamos lá, você sabe, terceiro mês… ‘Tem alguém lendo isto aqui?’… Disseram: ‘Oh, sim! Está em torno de 250.000 pessoas’. Então era como se, de repente, todo mundo no planeta soubesse que Neil Gaiman era um Blogger.
(a assessora de imprensa me interrompe: tenho direito a apenas mais uma pergunta) Bem, só dá tempo pra mais uma… Sandman, de novo. Ele tende a se tornar um estigma em sua carreira. Muitas pessoas não gostam disso porque por ver toda a sua obra reduzida apenas a uma parte de seu trabalho. E você, o que pensa a respeito deste estigma?
Bem, se eu for conhecido por Sandman, tudo bem! Se eu for conhecido por American Gods, tudo bem! Se eu for conhecido por The Day I Swapped My Dad for 2 Goldfish, tudo bem também. Todos eles são bons trabalhos para serem reconhecidos, ou não reconhecidos, quem sabe? Para mim, importa que gosto de meus leitores.
Ok. É isso. Obrigado, Neil.
De nada, sinta-se sempre bem-vindo.
Nota do Delfin:Colaboraram no processo de transcrição – e tradução do meu inglês macarrônico – : Moema Joffily Dias, Camila Galheigo Coelho e Pedro Gabriel Galheigo Coelho. Tô devendo uma pra vocês (mas cobrem, minha memória é péssima!)…
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