Adaptar obras clássicas da literatura para os quadrinhos não é novidade. Mas daí a dizer que é fácil vai um longo, absurdamente longo caminho. Que o digam o roteirista Felipe Greco e o desenhista Mário Cau, que aceitaram o desafio de transcrever para as páginas de uma HQ uma das mais celebradas obras de Machado de Assis: Dom Casmurro. Foram seis anos de trabalho que podem ser conferidos em 232 páginas da Graphic Novel que acaba de ser lançada pela Devir – R$ 56,00 em brochura ou R$ 65,00 com capa dura.
Quem estiver em Campinas neste dia 17 de abril, por sinal, pode pegar um autógrafo dos autores na Fnac do Parque Dom Pedro Shopping, onde acontece o lançamento oficial a partir das 19 horas. Neste Dom Casmurro em quadrinhos, difícil saber com quem ficou a tarefa mais tarefa mais hercúlea. Afinal, Greco teve que trabalhar um roteiro que fosse fiel à obra e possibilitasse que ela ganhasse vida em nova linguagem, enquanto Cau ficou com a ingrata missão de transformar em imagens uma obra que faz mistério justamente por meio da falta de imagens, deixando tudo à imaginação do leitor. Ou alguém aí consegue descrever com firmeza como seriam os tais “olhos de ressaca de Capitu”?
Aliás, tem gente até que acha que leu o livro e ainda hoje acha que a tal “ressaca” refere-se à condição de alguém após uma bebedeira, e não à ressaca do mar, o olhar “como aquela onda cava e profunda que ameaça avançar e tudo tragar.”
“Muito da sutileza e do mistério que Machado de Assis criou vêm do texto, da falta de imagens. Ele não costuma descrever muito o físico dos personagens. Mas é uma responsabilidade da qual não existe fuga: não daria para contar essa história sem dar ‘caras’ a eles”, diz Cau, que por sinal fez um belo trabalho, com belo domínio do preto e branco e (por que não dizer?) Remetendo-se constantemente ao estilo noir.
O argumentista Greco – que confessa não ter boas lembranças de Dom Casmurro no tempo da escola – conta que releu o livro muitas vezes. “Estudei cada detalhe dentro e fora do livro, inclusive em obras de moda, comportamento e arquitetura de época. No fundo foi um reencontro com algo que havia em mim, um bloqueio, certa antipatia pela prosa machadiana – não pelo texto, menos ainda pelo autor, mas por ter sido forçado a ler um livro que, para um pré-adolescente de 11 ou 12 anos…”. Se superou o trauma, só Greco pode dizer, mas que conseguiu o objetivo, isso é inquestionável: o roteiro de Dom Casmurro nos quadrinhos remete-se ao livro com fidelidade e, ao mesmo tempo, de maneira criativa.
O desenhista Cau, é bom dizer, também tem participação no roteiro, afinal foi preciso fazer adequações na hora de ilustrar. “Estendi e comprimi o roteiro onde achei mais conveniente, para potencializar a narrativa e dar um bom ritmo, o que foi possível porque não tínhamos uma limitação no número de páginas. A maioria das adaptações literárias para quadrinhos sofre essa limitação, que inviabiliza um bom trabalho, muitas vezes mata toda a poesia e profundidade do original”, afirma.
Cau faz questão de destacar ainda que Dom Casmurro em quadrinhos é a leitura que a dupla tem da obra, sem nenhuma pretensão de se sobrepor à de ninguém. “Não propomos que seja a adaptação definitiva e sim a nossa interpretação do que o Machado narrou.”
À parte desta adaptação em particular, toda vez em que uma grande obra é adaptada para os quadrinhos sempre surge alguém, em algum lugar, que teme que a HQ substitua a leitura do livro e, ao fazê-lo, prive leitores da obra de grandes autores. A estes críticos apocalípticos, vale lembrar que o quadrinho não vem para substituir a obra. Pelo contrário: é fato comprovado que a literatura em quadrinhos é, na maioria absoluta das vezes, um caminho certo para despertar o interesse – e a leitura – dos originais nos quais se inspira.
Sobre os aurtores:
Machado de Assis – Reconhecido como o maior nome da literatura nacional, escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário. Testemunhou a mudança política no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e relator dos eventos político-sociais de sua época. Site: http://www.machadodeassis.org.br/
Felipe Greco – Ficcionista e editor, publicou para adultos Caçadores noturnos (Desatino, 2011), O coveiro (Desatino, 2003) e Relicário (Edições GLS, 2009). Para adolescentes, Memórias do asfalto (Desatino, 2006; prêmio ProAC). E em 2010, Lilica, o rabugento e o leão banguela (Desatino; projeto premiado pelo ProAC). Em 2009/10, com o Prêmio de Interações Estéticas da Funarte, concluiu O escorpião (teatro, inédito). Blog: http://felipe-greco.blogspot.com.br/
Mario Cau – Quadrinista e ilustrador, entre seus trabalhos autorais estão: a série de HQs autorais Pieces (independente) que já teve três edições, uma reflexão sobre os pequenos momentos poéticos da vida cotidiana; a edição especial NÓS – Dream sequence revisited (Balão Editorial, 2010); Burocratia e By the southern grace of God (independentes, 2011). Participou de vários títulos,como: MSP+50 (Panini, 2010); a série Nanquim descartável, Café espacial, Quadrinhópole (independentes); Heavy Metal (2009); Front (Via Lettera, 2007 a 2009), entre tantos outros. Em 2012 passou a integrar a equipe criativa de Equipe Evoke, webcomic produzida por Kiyash Monsf, em parceria com Estevão Ribeiro e Caio Yo e apoiada pelo Banco Mundial (www.equipeevoke.com). Atualmente produz a elogiada série de webcomics Terapia, ganhadora do Troféu HQMIX na categoria “Web Quadrinho”, com roteiro de Rob Gordon e Marina Kurcis (www.petisco.org/terapia). Site: www.mariocau.com
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