RevolucioMário Latino

Ele tem mais de 9 mil tiras publicadas (e todas disponíveis na Internet), já publicou em diversos jornais – em especial em São Carlos (SP) onde morou por um bom tempo – e desde 1998 publica uma revista própria que costumava vender por apenas R$ 1,00. Apesar de (injustamente) pouco conhecido, o quadrinista Mário Latino Muñoz é um dos grandes artistas da área no Brasil. E com uma vida que, como ele mesmo e os amigos gostam de dizer, daria um excelente roteiro para uma HQ.

Nascido na Nicarágua em 1957, Latino teve uma vida bastante conturbada por motivos políticos. Abandonou a faculdade (onde cursava engenharia) para lutar na guerrilha contra a ditadura de Somoza, que dominava o país com mão de ferro. Com o trunfo sandinista, entrou para as forças armadas revolucionárias, vivendo a época em que a Nicarágua corria perigo de ser invadida pelos USA e participou da guerra contra os ‘contras’.

Em 1987 se desentendeu com alguns chefes militares que tinham abandonado alguns princípios (Latino denunciou irregularidades no alto escalão e acabou sendo preso após um “julgamento” para inglês ver). Veio para o Brasil ainda em 87, após se separar da primeira esposa, que foi para os EUA com os dois filhos do casal. Trabalhou um tempo em Brasília e depois mudou para São Carlos (em 1992).

“Já em 1990 tinha decidido que me tornaria um cartunista. Tive que aprender na raça e em 93 publiquei dois números de um fanzine que batizei como X-COMICS”, conta Latino, que voltou a se casar na cidade. Em 1995, lançou outra revista com o mesmo título, mas trazendo uma aventura de faroeste chamada O Homem do Missouri.

 

Em 1997 começou a publicar no jornal Primeira Página, de São Carlos, uma tirinha de humor que, segundo ele, era “meia-boca”, chamada Roberval. A tira, cujo  personagem principal é uma “autoocaricatura”, se tornou rapidamente o maior sucesso na cidade, graças ao humor sempre presente nas histórias do dia a dia do cartunista, a mulher e o filho.

Depois dessa tira vieram O Capitão Trovão e Faísca (uma sátira aos super-heróis estrelada por Roberval e seu filho no melhor estilo Batman e Robin), Os Coiotes, Nick Martins e Tartuce. Em 1998, Latino publicou o primeiro número da revista GrapHiQ, para a qual também criou o Agente Secreto 000125 e Bob ‘The Kid”.

Em meados dos anos 2000 o autor se mudou para Suzano e, em 2004, chegou a mudar o nome da GrapHiQ para Roberval, em decorrência da popularidade do personagem com os leitores.

O nascimento de Roberval

Mário Latino conta que a gênese do personagem (e alter-ego) Roberval foi um tanto quanto confusa. “Nem eu sei como nasceu Roberval. Minha enteada me falava para fazer alguma coisa relacionada com humor, que eu me ia dar muito bem. Aí eu pensava no tipo de personagem que faria. Gatos já tinha aos montes. Tiras de família também. Tentava bolar alguma coisa e não saia, emperrava. Pensava: ‘Mas, como é possível? Sou um cara engraçado, que sempre está tirando sarro das situações, que sempre está rindo de si mesmo e não consigo fazer uma tira diária, criar uma personagem?’ Na época em que decidi prestar o vestibular de Letras (Nota da Redação: ele passou, na UFSCAR) e separei duas semanas para estudar gramática e literatura.”

Foi naqueles dias de estudo que Roberval apareceu. “Era uma mistura de escritor com desenhista, aquilo que eu pretendia ser. Ele trabalhava o tempo inteiro dentro de casa, enquanto a mulher se esfolava numa repartição pública”, conta. Por trabalhar em casa, Roberval sempre está de camiseta e bermudas, chinelão e com a barba por fazer. Banho só no final do dia e porque a mulher reclama.

No início a tira eram ele e a esposa. Com o tempo apareceu Júnior, “que tem a cara da mãe e o topete do pai.” Curiosamente, no princípio o filho de Roberval era bem diferente e desenhado mais adolescente. Com o tempo, foi ficando mais esperto e com aspecto de criança. “Eu acho que ele, aos poucos, se tornou o centro da história. Um dia fiz uma contagem de tiras e de 200 que separei, o moleque aparecia em 187”, diz.

Latino conta que não decidiu exatamente quem são Capitão Trovão e Faísca nas HQs. “Eles bem poderiam ser uma tira desenhada pelo cartunista Roberval ou uma manifestação dos seus mais íntimos anseios. Chupando o visual de Batman e Robin, eu consegui que as noites de Sanca City, a cidade em que vivem, ficassem mais interessantes”, conta.

Apesar de cativar o público com as tiras de humor, Latino afirma que o sonho seria trabalhar apenas com faroeste. “É o gênero que me cativa, graças a Tenente Blueberry de Giraud/Moebius e ao Ken Parker. Me fascina desenhar cavalos ao galope, ou um Colt Peacemaker cuspindo fogo”, diz.

Entre as aventuras no mundo western, Latino destaca Os Coiotes, que começou a fazer para o jornal Primeira Página. “Como nessa época fazia quatro tiras diárias, não tinha roteiro para todas, fazia em cima da hora. Foi aí que me dei conta que tiras exigem uma narrativa vertiginosa. Toda aquela enrolação que é o quadrinho de hoje, com grandes painéis ou pinups, em jornal simplesmente não funciona. Você tem um espaço pequeno para narrar tua história e, pior, contá-la em três quadrinhos por dia. Fiquei maravilhado com o processo todo. Desde então só desenho em formato tira.”

O autor também chegou a desenhar uma página de homenagem ao cowboy Tex Willer, onde inclusive se colocou dentro da história em “participação especial.”

GrapHiQ

O gibi GrapHiQ surgiu patrocinado pelo Senac de São Carlos. “Eu tinha uma penca de tiras, tinha artigos sobre quadrinhos, já que escrevia para o jornal dois artigos por semana. Era só aproveitar o material, arrumar uns patrocinadores e pronto”, resume o autor.
De início o SENAC bancou toda a edição, que era distribuída gratuitamente na cidade. “Arrumei ainda alguns anunciantes. Na prática eu fazia os desenhos, os textos, batalhava pelos anunciantes. Só não imprimia nem queimava chapa nem grampeava a revista. Com altos e baixos tenho levado a revista: uma parte dela era distribuída em São Carlos e outra eu tentava colocar em São Paulo.”

Latino diz que a luta para manter a revista no mercado valia a pena, ao menos do “ponto de vista espiritual”. “Sinto orgulho do que fiz, mas não posso deixar de pensar que estava agindo como um louco, um apaixonado por quadrinhos. Sacrificava muitas coisas e ganhava pouco dinheiro. Não é um roteiro que indicaria para ninguém.”

Em 2004, depois de 20 exemplares publicados, a revista não só mudou e nome para Roberval como aumentou de tamanho. Os artigos e matérias, porém, deixaram de ser publicados e passaram a integrar  o Jornal Graphic. Os dois títulos foram publicados regularmente até meados de 2014, 2015.

Atualmente, Mario continua publicando tiras diárias no site https://www.graphiqbrasil.com/ e, entre elas, as de Marshall Apple, onde conseguiu unir – nas aventuras do personagem Wyatt Apple –  o sonho de se dedicar a HQs de cowboy com o humor típico de Roberval que os leitores tanto gostam.

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

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