A sacada já começa no título, misturando os nomes do clássico filme de ficção científica e do revolucionário autor de O Capital. Mas nem de longe para por aí. Mad Marx, HQ da dupla Alexandre Esquitini e Jeferson Rocha, mescla de maneira eficiente personagens históricos, conceitos políticos e econômicos, bom humor e ironia (explícita ou subtextual) para criar uma aventura nunca vista em um futuro pós-apocalíptico.
A história começa em Nova Fuligem, uma das cidades sobreviventes de um cataclisma nuclear. O atual mandatário do mundo é Elllon Mosca, poderoso empresário que já clonou diversas vezes o próprio corpo – e em uma delas aparentemente teve o material genético misturado ao do inseto, fórmula garantida desde o filme A Mosca (1986) para gerar no mínimo um visual um tanto quanto nojento.
Com um exército de robôs que utilizam cérebros sugados da “classe média corrompida”, Mosca faz do mundo o que bem entende, mas enfrenta resistência.
Entre os rebeldes está um tal sr. Luiz, que já foi eleito presidente oito vezes, tem apenas quatro dedos em uma das mãos e – se tudo isso já não bastasse para a paródia funcionar – anda a bordo de uma máquina subterrânea com tentáculos de lula…
Após fracassar na tentativa de negociar com Mosca, o líder rebelde fará um grande sacrifício para reviver…Karl Marx e Friedrich Engels! Vistos por Luiz como única esperança do mundo, a dupla é trazida de volta à vida. E se, até onde se sabe, historicamente os dois filósofos eram parceiros e colaboradores intelectuais, na HQ a dupla é assumidamente um casal.
Por isso mesmo, em um primeiro momento resolvem deixar de lado a política e desfrutar do amor que sentem um pelo outro em uma casinha própria, mas acabam sendo sobrepujados pelo sistema e inevitavelmente – a contragosto – se unem à revolução.
Logo no começo da revista e antes do início da HQ, em um texto divertidamente chamado de Materialismo fictício dialético, os autores apontam que tem como objetivo “apontar contradições inerentes a qualquer sistema de organização humano utilizando de artifícios como a linguagem exagerada e às vezes absurda para subverter argumentos clichês e críticas políticas do senso comum. Apesar da temática aparentemente densa, a obra nasceu para ser divertida, cheia de reviravoltas e repleta de personagens cativantes na qual nenhum campo ideológico será poupado.”
Objetivo amplamente cumprido, é bom frisar. É impossível não ser cativado por um Marx com aspecto de guerreiro macho alfa com martelo de guerra à mão, ao lado de um Engels reflexivo e carinhoso com seu “querido”. Há diversas brincadeiras inteligentes na HQ, como Marx reclamando do peso de ter tido um movimento criado com o nome dele ou agradecendo a Engels por ter publicado O Capital (o que foi feito após a morte de Karl). Ou ainda a ironia da dupla ter de vender bonequinhos de pelúcia do “sr. Luiz” na feira para sobreviver.
E há ainda algumas “previsões do futuro” curiosas. Isso porque a obra foi lançada digitalmente em 2023 e ganhou versão impressa em 2024. Ou seja, antes de Trump vencer a eleição americana, nomear Ellon Musk como todo poderoso do governo e implementar a amalucada e desastrosa política das tarifas escorchantes sobre produtos não-estadunidenses.
Porém, no quadrinho, Trump (ou um ciborgue com as memórias dele) foi quem acabou com os EUA e Elllon Mosca traiu a todos para impor o próprio império. OK, esses dois fatos (ainda) não aconteceram, mas se mostram bem mais possíveis que em 2023.
Impressionante, porém, é o fato de que, quando Marx e Engels vão ao cartório resolver uma pendência imobiliária, são informados pelo robô escriturário que o governo vigente “corrigiu as taxas” e eles precisarão pagar três vezes mais o que pagariam antes. E que a “oferta é válida até o final do dia”…
Além do bom roteiro, a arte de Jeferson Rocha é um capítulo à parte. O visual dos personagens e cenários é muito bem elaborado, cheio de detalhes que valorizam a história. As cenas de ação, perseguição e lutas têm uma fluidez e impacto valorizados pelo uso de diferentes perspectivas, linhas cinéticas e onomatopeias que se misturam ao movimento, ao estilo dos quadrinhos japoneses.
Rocha e Esquitini também mandam bem nas tirinhas de humor Um amor material, uma espécie de conteúdo extra focado no relacionamento da dupla Marx e Engels incluso no gibi após a história principal. Nelas o mundo apocalíptico fica de lado e o leitor acompanha momentos de ternura, fofos mesmo, do casal. Entre eles a confecção “com amor” do martelo de guerra de Marx, batizado de “tese 11”.
Vale ainda ressaltar que a editora Mistifório, responsável pela obra, também lançou o livro “Arte e Processo de Mad Marx”. Nele é mostrado o passo a passo da concepção dos personagens e de toda a parte visual da obra, incluindo logotipo e até as pichações das paredes da HQ.
Todos os conceitos são explicados com direito a diversos detalhes, como o fato de cada letra L no nome de Elllon Mosca indicar uma clonagem diferente e de Marx não ter um olho porque o “combustível” do processo que o trouxe de volta, o senhor Luiz, não tinha um dedo.
Mais Mad Marx: Fordlândia vem aí
A editora Mistifório deverá lançar a segunda parte de Mad Marx em junho deste ano de 2025. Agora, o objetivo dos rebeldes será impedir Mosca de recriar ao Fordlândia, a cidade (de verdade) que foi criada por Henry Ford no estado brasileiro do Pará em 1927, com o objetivo de ser um campo de trabalho exclusivo para produção de borracha para os pneus dos carros.
O projeto foi abandonado em 1945 por causa de revoltas dos trabalhadores por melhores condições e da descoberta da borracha sintética. Na HQ, segundo a sinopse divulgada, Marx partirá em um veículo Gurgel em busca de respostas “enquanto enfrenta carros Ford da década de 1940 numa aventura repleta de ação, união e perigo.”
O roteiro e concepções são mais uma vez de Esquitini, mas os desenhos serão de Júlio da Gaita. Segundo o roteirista, a troca foi necessária porque Jeferson Rocha teve um problema na mão que impossibilitou que fizesse a HQ, porém o desenhista foi mantido na produção das capas e da nova sequência de tirinhas de Marx e Engels em Um amor material.
Quem quiser apoiar a obra, que já bateu a meta, pode dar um pulinho no catarse (https://www.catarse.me/madmarx2) até 20 de junho. É possível adquirir, inclusive, pacotes que incluem a edição inicial e até brindes como uma estatueta de Mad Marx a bordo do Gurgel.
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