Um adolescente ganha superpoderes por acidente e passa a viver uma vida dupla, escondendo a nova “identidade secreta” da família ao mesmo tempo em que tenta ajudar quem precisa, ao mesmo tempo em que lida com os dramas típicos da juventude e da escola com uma boa dose de bom humor e respostas sarcásticas. Descrito desta forma, é impossível não pensar nos primeiros anos do Homem-Aranha…e com certeza há muito em comum entre a adolescente Kamala Khan e Peter Parker nos primeiros anos de aventuras do herói.
Mas também há muitas diferenças e a principal delas é que Kamala Khan é uma menina muçulmana, o que traz um elemento a mais para as histórias: além de ter (?) de esconder sua nova identidade da família, ela convive com os contrastes não só religiosos, mas também culturais da própria formação em relação à sociedade estadunidense – ou, na maioria das histórias, de alguns colegas de escola que insistem em estereotipá-la (com grande destaque para a “menina popular da escola” Zoe Zimmer).
Criada em 2013 por um quinteto de editores, roteirista e desenhistas (Sana Amanat, Stephen Wacker, G. Wilow Wilson, Adrian Alphona e Jamie McKelvie), Kamala Khan é mais um bom exemplo da inclusão que vem crescendo cada vez mais no mundo das HQs. E, é bom dizer, ocorre tanto por motivos nobres quanto comerciais.
A ideia de dar voz as mais diferentes histórias e fazer com que as pessoas possam se enxergar nos personagens, se verem representadas, obviamente também amplia vendas para outros públicos-alvo específicos. Muçulmanos também lêem gibis, ora bolas, e muitos gostam de super-heróis.
Aliás, isso está refletido na própria origem da personagem dentro das HQs – que o leitor brasileiro pode conhecer na edição especial Ms. Marvel, lançada neste ano de 2021 pela Panini Comics (são 256 páginas reunindo três diferentes arcos da personagem, tudo colorido e em papel couchet, com preço de lançamento a R$ 34,90).
Aos 16 anos e morando com os pais e o irmão, Kamala Khan é fã dos Vingadores, segue as aventuras do grupo de heróis, tem pôster deles no quarto, uma camisetas do Capitão América e companhia, e é particularmente fanática pela Capitã Marvel, que acha demais.
Ela também é uma adolescente paquistanesa-americana natural de Jersey City e em conflito com alguns princípio de sua religião, como o fato de não poder comer carne (e adorar o cheiro de bacon), ser proibida de ir em festas da escola porque vai haver meninos nelas, e por ter de usar a entrada lateral da mesquita e se sentar longe dos garotos durante o sermão do xeique porque “as mulheres devem preservar sua dignidade e modéstia.”
Mas eis que em uma noite, após brigar com o pai que a proíbe de ir em uma festa, ela decide sair escondida e ir assim mesmo. Depois de tomar um gole de uma bebida com álcool (enganada por um colega que garantiu que não era nada alcoólico), ela decide voltar para casa quando é envolvida por uma estranha neblina. A menina desmaia e começa a ter delírios nos quais os Vingadores surgem para ela (falando urdu, o idioma nacional do Paquistão) e deseja ser como a Capitã Marvel, mas “na versão clássica”, quando a personagem ainda era chamada de Ms. Marvel.
E não dá outra, quando acorda, a menina está loira e com roupas de Ms. Marvel, além de poderes estranhíssimos, que incluem membros que esticam mais que borracha e podem ficar tanto grandes quanto pequenos – as mãos, em especial, chamam bastante atenção. Pra completar, ela acaba salvando uma colega alcoolizada e, pra encerrar com chave de ouro, chega tarde em casa e é colocada de castigo…
O que o leitor vai descobrir depois é que a tal neblina era a famosa névoa terrígena – aquela que dá poderes aos Inumanos – e que Kamala, agora, é uma polimorfa efetivamente tem tudo para ser o que sempre quis, uma super-heroína. E é o que ela vai fazer, se tornando oficialmente a primeira super-heroína muçulmana das histórias em quadrinhos.
É importante ressaltar que Kamala é uma muçulmana super e não uma super-muçulmana. Ou seja, as histórias da garota não são sobre a religião em si, mas tem diversos elementos que mostram como é ser muçulmano – o que é muito interessante, pois permite aos leitores de outras religiões, origens e cultura que tomem contato com o islamismo, destruindo assim preconceitos e ideias pré-concebidas.
Neste sentido, é muito interessante ver como há um equilíbrio ao se mostrar diversos aspectos não apenas do islã, mas das pessoas adeptas à fé e de como há, inclusive, diferenças e críticas dentro dela mesma, como ocorre em toda religião.
Na família de Kamala, por exemplo, o irmão dela, Amir, está em conflito com o pai por não trabalhar porque “se recusa a lucrar com a usura” e ouve do genitor que o trabalho dele no banco é o que possibilita que o filho fique sentado em casa contemplando a eternidade. “Rezar é nobre, mas quando se passa o dia inteiro rezando, começa a parecer que está evitando alguma coisa.”
A amiga de Kamala, Nakia, não admite mais ser chamada de Kiki e quer usar o véu na cabeça não por imposição de ninguém, mas porque se sente melhor assim. “Na verdade, meu pai quer que eu pare de usar. Ele acha que é uma fase”, pontua. O pai aparentemente rigoroso e que berra com Kamala é ao mesmo tempo extremamente carinhoso e compreensivo.
O xeique que determina a entrada das mulheres pela lateral, mesmo sem saber exatamente o que está acontecendo, se torna o grande apoiador de Kamala ao dizer que ela não precisa revelar o que está fazendo, mas se vai continuar a fazer tem que ser da forma correta: com coragem, força, honestidade, compaixão e respeito próprio (uau, por essa nem Tio Ben esperava). Enfim, a história não é sobre religião, mas mostra como ela permeia a vida de uma pessoa e, ao fazer isso, desmistifica e traz uma série de informações sobre o Islã.
Isso posto, Ms. Marvel é uma história divertida, bem escrita e bem desenhada, com roteiros legais (que incluem, inclusive, discussões sobre uso de celulares e a utilidade da geração conectada a eles) e vilões pitorescos. Na edição lançada no Brasil, além da história de origem há uma boa aventura na qual a menina tem a companhia de Wolverine e outra com participação da inumana Medusa e do cachorro dos Inumanos, o gigantesco e adorável Dentinho.
Kamala Khan tem tudo para ser um personagem que vai ganhar muito espaço e fãs, até mesmo porque o canal Disney+ já anunciou um seriado de Ms. Marvel que deve estrear ainda neste ano, que será estrelado pela atriz canadense Iman Vellani (ela também deve fazer uma participação especial no segundo filme da Capitã Marvel).
Espera-se, também, que novos quadrinhos da personagem sejam lançados por aqui, afinal, a julgar por essas primeiras histórias, Kamala Khan vai conquistar muita gente. Salaam Aleikum !
Em tempo: a Panini já está lançando um segundo exemplar da heroína: Miss Marvel: Danos por Segundo
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