Passada toda a histeria, sensacionalismo, discursos de ódio e imbecilidades puras destiladas em especial nas redes sociais, é hora de olhar com um pouco mais vagar e reflexão a bissexualidade de Robin 03 e Superboy. Começando justamente por aí: quem são efetivamente os personagens cuja sexualidade a DC resolveu trazer à tona.
O primeiro caso passou meio batido aqui no Brasil (e no mundo): Tim Drake, o terceiro Robin, se mostrou interessado romanticamente por um rapaz, Bernard, na revista Batman Urban Legends número seis, lançada nos Estados Unidos em agosto de 2021. Drake, que nas HQs já havia namorado = entre outras meninas – a personagem Stephanie Brown (a Salteadora), assumiu assim ser bissexual.
O impacto dessa “revelação” foi de aproximadamente zero – apesar de algumas mídias brasileiras terem destacado manchetes como “Robin se assume bissexual”. Primeiro porque se trata do terceiro personagem a ocupar o manto de menino prodígio ao lado de Batman. Os leitores assíduos de Batman sabem de quem se trata, mas para a maioria do público mundial o Robin conhecido é Dick Grayson, personagem criado por Jerry Robinson em 1940 e que depois se tornou o Asa Noturna.
Depois dele veio Jason Todd, atual capuz vermelho (tanto Grayson quanto Todd já apareceram na série Titans, na Netflix). Só depois veio Drake, que para muitos foi um Robin “insosso”, e -por fim – o atual Robin: Damian Wayne, um jovem treinado pela Liga dos Assassinos e que é filho de Bruce Wayne com Talia Al´Ghul.
Além disso, boa parte das pessoas já acha que o personagem Robin (independente de quem vista o manto) é gay, uma história que surgiu graças a um triste episódio na história dos quadrinhos, quando o “psicólogo” Frederick Wertham lançou o livro A Sedução do Inocente, no qual dizia que quadrinhos causavam comportamentos criminais e anormais (leia-se homossexualidade, que na época era encarada de maneira ainda mais preconceituosa do que por alguns nos dias de hoje) e Batman e Robin eram “o sonho gay.”
À época, o livro de Wertham levou pais e professores a queimarem HQs na fogueira (literalmente) e teve como consequência direta a censura, na forma do famigerado “Código de Ética dos Quadrinhos”. A consequência indireta foram inúmeras piadinhas e insinuações de gosto duvidoso ao longo das décadas seguintes, e a informação – falsa – que praticamente passou a fazer parte do inconsciente coletivo de que Robin (qualquer Robin,) era gay.
SuperBi
Já o segundo herói a se mostrar bissexual nas HQs foi o Superboy Jon Kent. Isso mesmo, você leu corretamente: Superboy, apesar de a imprensa ter se deliciado dizendo que “o novo Superman” é bissexual. Não que houvesse algum problema caso Clark Kent se descobrisse bi – além da incongruência narrativa, já que durante toda sua “vida”, desde que foi criado em 1938, ele sempre foi hétero. Porém, o personagem em questão é Jon, filho de Clark Kent (ou Kal El, para quem preferir o nome kryptoniano).
Ocorre que o garoto de 17 anos está “substituindo” o pai em uma série chamada “Superman: son of Kal El” enquanto o herói vive aventuras no espaço. E, claro, chama muito mais a atenção (vende mais jornal, rende mais curtidas, gera mais polêmica) dizer “novo Super-Homem” em vez de “filho do Super-Homem” ou “Super-Interino”…
Razões, precauções e muita cautela
Em ambos os casos, a decisão da DC em ter trazido à tona a sexualidade de dois personagens remonta a agosto de 2020, mais especificamente ao DC Fandom. No evento, o desenhista e atual chefe de criação da DC, Jim Lee, falou sobre as mudanças no mundo dos heróis, que está cada vez mais inclusivo e refletindo o mundo real.
Lee anunciou o relançamento de títulos da editora (hoje selo da DC) Milestone para fevereiro deste ano de 2021, com a retomada dos heróis Ícone e Super-Choque, e lembrou que o seriado Supergirl já tinha lançado a primeira superheroína transgênero, Nia Nial/Sonhadora (Dreamer). Ressaltou ainda que o conceito de multiversos permite trabalhar ainda melhor a inclusão (citando neste ponto a existência do Super-Homem negro, Calvin Ellis, da Terra-23).
Desde então, os roteiristas tem sido incentivados a propor HQs que apostem mais na diversidade (religiosa, étnica, sexual, cultural) dos personagens. Com isso, não apenas os quadrinhos cumprem a nobre e desejada meta de serem mais inclusivos como, obviamente, geram novos nichos de venda, uma vez que mais pessoas passam a encontrar personagens com os quais se identificam. Ou seja, o público leitor – e o consumo de gibis – tende a se diversificar e aumentar.
Não custa lembrar que essa linha de pensamento não é, nem de longe, exclusiva da DC Comics. Várias editoras de diversos tamanhos já identificaram essa demanda e passaram a apostar na diversidade. Entre elas a maior concorrente da DC, a Marvel, que tem até uma super-heroína muçulmana e recentemente lançou “um Capitão América gay”.
Mas, de volta a DC Comics, é impossível não enxergar o quão cuidadosa a editora foi para incluir a bissexualidade de personagens nas histórias. Precaução e cautela foram as palavras-chave no planejamento de Jim Lee, em isso fica bem claro nas escolhas dos personagens. Primeiro o óbvio: nada de mexer com personagens que já têm a sexualidade estabelecida e que têm muitos fãs.
Então o teste veio com um Robin mais secundário do que o Xaveco nas histórias da Turma da Mônica. E, claro, tudo feito de maneira muito delicada: nada de imagens mais fortes de início, apenas olhares, sorrisos e um clima de romance no ar.
Sem nenhum problema de aceitação entre os leitores, veio o passo seguinte. Mais um secundário, e esse sem nenhum histórico passado, uma folha em branco (diferentemente de Robin 03, que já havia tido um relacionamento conhecido com ao menos duas personagens feminina): Jon Kent, o filho do Superman.
Alguém pode dizer, claro, que a DC deu um passo a mais, afinal neste caso houve um beijo entre Superboy e o namorado. Mas, ainda assim, tudo calculado para não chocar: olhe bem a imagem do beijo e veja se consegue afirmar que é entre duas pessoas do sexo masculino. Impossível.
Jay Nakamura, o interesse amoroso do jovem super-herói, é um exemplo de androginia, com seus cabelos cor-de-rosa e traços puxando para o mangá. Sim, a DC Comics ousa, mas ousa com muito cuidado…
Polêmica e homofobia
O mundo anda muito polarizado e o Brasil, mais ainda. Não surpreende então que, depois que a mídia resolveu que o Superboy era o novo Super-Homem, o anúncio da bissexualidade do herói tenha gerado muito pano pra manga, afirmações toscas e discurso de ódio por aqui (Robin 03, por outro lado, foi solenemente ignorado e pode continuar namorando em paz).
Um dos primeiros ataques ao filho do Superman veio, sem surpresa alguma, família presidencial brasileira. A afirmação do 03 (filho 03, não confundir com o Robin 03 bi) foi um tanto confusa – um herói bi pode destruir a masculinidade dos mais tolerantes? Seria esse um novo super-poder? Mas não causou muito rebuliço, afinal este tipo de comentário, ainda que preconceituoso e infeliz, não é nenhuma surpresa vindo da família Bolsonaro.
O que causou o verdadeiro burburinho, porém, foi uma postagem do jogador de vôlei Maurício Souza, que colocou uma imagem do beijo do Superboy questionando “onde o mundo iria parar”. Maurício se defendeu se identificando como uma pessoa de direita que estava emitindo uma opinião.
Contudo, a frase traz em si um óbvio discurso de ódio/homofobia, para não mencionar ignorância pura. Na opinião do atleta, aparentemente, um beijo entre pessoas do mesmo sexo está deixando o mundo pior. Aparentemente, para Maurício, pessoas poderiam se tornar bissexuais por verem a HQ e isso seria um problema.
Além do preconceito em si, a ignorância do comentário remete aos anos de 1940 e a Teoria da Bala Mágica, na qual os então estudiosos de comunicação acreditava que todas as pessoas que recebiam uma mensagem seriam influenciados por ela de uma mesma maneira e reagiriam também de maneira igual. Como se não houvesse filtros individuais e, neste caso, como se a orientação sexual de alguém pudesse ser de alguma forma moldada por fatores externos.
O também jogador de vôlei Douglas, homossexual assumido, respondeu na lata: “Engraçado que eu não ‘virei heterossexual’ vendo os super-heróis homens beijando mulheres. Se uma imagem como essa te preocupa, sinto muito, mas eu tenho uma novidade para sua heterossexualidade frágil. Vai ter beijo sim. Obrigado DC por pensar em representar todos nós e não só uma parte.”
A partir daí o assunto virou discussão nacional – e acabou causando a saída de Maurício da equipe que defendia, pressionada por patrocinadores – e teve até gente tentando achar um discurso de apoio ao atleta e protesto ao Super-Homem alegando que a “nova sexualidade” do herói estaria mudando os valores que ele representa.
Não custa lembrar, primeiro e de novo, que Jon Kent é o Superboy e não o Super-Homem. Em segundo lugar, orientação sexual e valores são coisas diferentes. Tanto Super pai quanto Super filho continuam lutando pela Justiça e pela Liberdade, defendendo a humanidade contra o mal. Isso são valores e independem de a pessoa que os tem gostar de indivíduos do mesmo sexo ou não.
Em tempo: de maneira infantiloíde, Maurício – que, dizem, será candidato por algum partido conservador – voltou à carga pouco depois colocando uma postagem de “bom dia” uma imagem do Super-Homem beijando a Mulher-Maravilha, como que para reforçar o que ele entende ser “normal”. Ora, o Super-Homem, como já dissemos, é heterossexual mesmo e não é o mesmo personagem que é bi. E, se fosse, mostrar o herói ficando com uma mulher depois de ter postado com um homem não estaria simplesmente reforçando a bissexualidade?
Pingos nos is
Não é a primeira vez que acontecimentos com personagens de histórias em quadrinhos mobilizam a sociedade, em maior ou menor dimensão. Mortes de personagens, por exemplo, costumam afetar muita gente e render manchetes – apenas para citar alguns exemplos, Rê Bordosa, Superman, Sandman e Capitão América ganharam não só notícias nos mais diversos meios como protestos e até mesmo funerais feitos por leitores de verdade.
Mudanças de uniforme, poderes e até de status marital também geram discussões acaloradas – do casamento de heróis ao divórcio. No Brasil, muitos leitores da Turma da Mônica não gostaram quando os pais de Xaveco se separaram, enquanto muitos outros elogiaram, afinal milhares das crianças leitoras são filhas de casais separados e passaram a se identificar com o personagem.
A questão de identificação, aqui, é a chave. Personagens fictícios, em especial heróis, funcionam como modelos míticos, permitindo aos leitores que utilizem suas histórias para explicar o mundo, buscar e experimentar sentidos, colocar a mente em contato com as experiências da vida. E os heróis dos quadrinhos, como pontua o professor DJota Carvalho na dissertação de mestrado A Morte do Herói (Faculdade de Educação, Unicamp), “desenvolvem uma relação catártica com o leitor, na qual este se projeta no personagem e o utiliza para indiretamente viver seus medos e desejos.”
Portanto, nada mais natural que o envolvimento das pessoas reais com os personagens fictícios (e isso, claro, vale para livros, filmes, novelas, seriados). E é de se esperar que novidades nas histórias gerem conversas ou reações das mais variadas entre o público, que pode gostar ou não delas.
Contudo, infelizmente a boa intenção de promover a inclusão nas HQs, neste caso da sexualidade de Tim Drake e Superboy, trouxe à tona um discurso de intolerância. Mais do que um termômetro de nossos tempos, é algo a ser combatido e temido tanto dentro dos quadrinhos – onde por razões similares inúmeros gibis já foram levados para a fogueira e censurados – quanto fora deles, onde milhões de pessoas sofrem com preconceito, violência e são vítimas de crimes meramente por gostarem de quem gostam.
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