Dr. Estranho em O Deus da Dor

por Gian Danton*

Parte I

O que é dor? Como surgiu a dor? Por que ela acompanha cada um de nós, como uma fera à espreita da caça? Como fugir da dor? Essas são reflexões que acompanham o homem desde que o primeiro ser humano se sentiu doente, triste ou às portas da morte. Por que a dor? E era nisso que pensava o Doutor Estranho quando se deparou com a menina.

Ela chorava e seus olhos escorriam lágrimas de sangue. Seu corpo pequeno e frágil contorcia-se em convulsões. Dor. Essa foi a única palavra que Stephen Strange conseguiu achar para definir o que estava vendo. O mago supremo, os mestre das artes místicas não encontrava palavras que pudessem ser pronunciadas. Não havia consolo ou explicações. Seus lábios só poderiam exprimir compaixão. Um amigo do tempo de faculdade o procurara.

Ele ouvira que o cirurgião agora curava almas e resolveu pedir sua ajuda. Ele o levou até um bairro decadente no centro da cidade. Eles percorreram ruas sujas e entraram em um velho prédio de paredes rachadas. Baratas andavam calmamente pelas paredes. A menina estava em um recinto fechado e abafado, sobre um colchão. Ela não se mexia e seus olhos estavam vazios.

– Qual é o nome dela? – perguntou Strange.

– Maria, señor. – respondeu a mãe da menina. Nós chamamos um curandeiro, mas ele não conseguiu expulsar o espírito de dentro dela.

– Não se preocupem. Este homem é um mágico. Ele vai ajudar sua filha. – disse o homem que o trouxera até ali.

Stephen Strange gostaria de ter tanta certeza. Sem dizer uma palavra, ele se sentou no chão, fechou os olhos e concentrou-se. Seria necessário usar o olho de Agamoto. O medalhão sobre seu peito iluminou-se e envolveu a menina com a sua luz, mas não conseguiu penetrar no seu espírito. “Há algo nela”, pensou o mago supremo.

“Um poder tão forte e antigo que consegue resistir ao olho de Agamoto. Ao mesmo tempo, é totalmente desconhecido…”. Havia outra coisa: um cheiro forte de sangue apodrecido impregnava todo o recinto. Aparentemente, Strange era o único a percebê-lo, o que indicava que o mesmo tinha origem espiritual, e não material. A única opção era desligar-se de seu corpo e deixar que o espírito realizasse uma investigação mais aprofundada. Stephen Strange sentiu como se flutuasse. Era como se a carga opressiva da gravidade o abandonasse repentinamente.

Suspenso no ar, ele se aproximou da menina e tocou-lhe a testa. Algo aconteceu. Um turbilhão pareceu tragá-lo. Em um instante ele estava rodopiando em meio a imagens caóticas. Ele viu prisioneiros sendo arrastados para um altar de sacrifícios. Viu um homem semi-nu pescando. Viu guerreiros vestidos de leopardo. Viu homens agitando-se em reviravoltas, com penas nos braços simulando pássaros.

Quando voltou a si, estava em uma sala escura, rodeado por pessoas vestidas de branco.

– Stephen, você está bem? Ele olhou para a mulher que estava falando. Percebeu que era uma enfermeira. – Stephen, você está bem?

– Onde… onde estou?

– Que pergunta! Na sala de operações…

– Eu… eu estava operando? Mas minhas mãos…

– São as mãos do maior cirurgião da América!

Strange olhou à volta. O ambiente à sua volta lhe parecia familiar, como num dja vu. – Em que ano estamos? –

Em 1963, claro!

O Deus da dor – Parte 2

– Sente-se bem? Quer continuar a cirurgia? – perguntou a enfermeira ao Doutor Estranho.

– Eu.. eu estou bem. – mentiu o Doutor. Sua testa suava e ele se sentia irreal, como se estivesse num sonho. Lá estava ele diante do paciente, suas mãos prontas para realizar a mais delicada das operações. É como se nunca tivesse feito outra coisa na vida e, no entanto, algo parecia estranho. O Doutor lembrava-se vagamente de um tempo em que não podia operar, mas isso não fazia sentido. Ele pegou os instrumentos e, para seu espanto, seus dedos faziam movimentos suaves como plumas. A operação foi um sucesso.

– Parabéns, doutor. O senhor nunca esteve tão bem. – felicitou a enfermeira.

Stephen Strange não respondeu. Ele saiu da sala e lavou as mãos. Retirou a roupa e colocou um terno impecável. No bolso da calça havia uma chave. Ele saiu do corredor e várias pessoas o cumprimentaram. As pessoas olhavam para ele num misto de admiração e inveja. No pátio do hospital ele encontrou um Mustang.

Stephen Strange entrou nele, deu a partida e engatou a primeira. Seu pé mal tocara no acelerador quando o carro saiu disparado como um touro. Antes de chegar à quarta marcha, ele já ultrapassara os 80 quilômetros por hora. Casas, carros e árvores passavam por ele como pinturas borradas. De repente um impacto. Tudo ficou escuro. Ele não sentia seu corpo. Só conseguia ouvir as vozes, soltas, perdidas…

– Aqui, socorram!

– É um homem… ele está morto?

– Não. Está respirando. Alguém chame uma ambulância!

– Vejam! Suas mãos estão… oh Meu Deus!

– Eu o estou reconhecendo. É Stephen Strange, o famoso cirurgião…

– As mãos dele…

Strange tentou erguer as mãos, mas elas não responderam. Tentou mexer os dedos, mas eles também não se mexeram. Stephen Strange chorou… chorou de dor. Não era apenas a dor física. Era a dor de saber que jamais operaria novamente. Era a dor de se sentir inútil.

O Doutor Estranho se recolheu em sua dor como um caracol que se encolhe em sua casa. Ele flutuou solto, perdido pelo vale das sombras. Sua dor era tão grande que parecia infinita. Não havia como acabar com a dor. Ela era irreversível e duradoura. Todas as pessoas podem senti-la. Todas as pessoas já a experimentaram, desde que o mundo é mundo. A dor é como o monstro Leviatã, de Hobbes, terrível, mas necessária. Então, quando seu espírito já se acostumava com essa idéia, algo protestou dentro de Stephen Strange.

Não era ele o mago supremo? Não fora ele que derrotara Shuma Garot? Será que um homem tão poderoso não conseguiria derrotar seus demônios interiores? O Doutor Estranho abriu os olhos. Seu espectro estava flutuando sobre uma paisagem lúgubre. Velhas árvores retorcidas e sem folhas despontavam aqui e ali, em meio à névoa. Havia choro e lamentos, mas o mago não conseguia ver uma única pessoa.

O Doutor desceu e percorreu caminho intermináveis e, quando perdia a esperança de encontrar o fim, achou o castelo. Ele passou por uma ponte levadiça e deu com uma imensa porta de carvalho. Vistoriando as paredes, Strange teve a impressão de que eram feitas de carne. Havia vários pregos fincados ali e, de quando em quando, o palácio todo se sacudia em espasmos de dor.

De repente a porta se abriu. Apareceu um velho vestindo um longo roupão. Ele tinha hematomas, cortes e cicatrizes espalhados por todo o corpo. Antes que o Doutor Estranho pudesse dizer qualquer coisa, ele se inclinou e indicou o caminho para dentro.

– Bem vindo à biblioteca da dor. – disse.

*Gian Danton, pseudônimo de Ivan Carlo Andrade de Oliveira (Lavras, 1971), é escritor e roteirista brasileiro de histórias em quadrinhos, além de professor da Universidade Federal do Amapá.

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

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