Há de chegar o dia em que a orientação sexual de pessoas conhecidas – no mundo real ou na fantasia – não renderão mais manchetes. Mas, enquanto ele não chega, não se surpreenda se receber em breve no whatsapp aquela tradicional “mensagem conservadora” alertando aos senhores pais para que não deixem suas filhas assistirem ao desenho do Scooby Doo, evitando que ele “influencie as meninas a virarem gays”.
Isso porque, na mais recente animação da turma dos jovens detetives que investigam mistérios ao lado do medroso cão Dinamarquês (Trick or Treat, Scooby Doo!, 37º longa de animação do desenho criado em 1969), Velma se apaixona perdidamente por uma mulher.
O fato foi o suficiente para gerar inúmeras manchetes de sites, blogs, jornais, notícias de rádio, comentários de influencers (etc) destacando a homossexualidade da personagem.
E, claro, de um lado foram levantadas bandeiras destacando a saída do armário e a representatividade, enquanto de outro houve protestos que incluíram do típico “desenho de criança não deve explorar esse tipo de assunto” a “esse povo só quer lacrar, ficam mudando personagem para chamar a atenção”, E ninguém nem fala nem se o desenho é bom.
Então, em tempo e antes de mais nada, o desenho é ótimo. E nunca é demais frisar: ninguém “vira” gay (nem hetero nem bi, meu povo!). Cada um é o que é, e tem de ser respeitado por isso.
Mas, de volta às manchetes chamativas, o curioso disso tudo é que a maioria das pessoas (e reportagens) não atentou para o fato que a orientação sexual de Velma Dinkley não é nenhum segredo pelo menos desde 2013.
Foi naquele ano, na série Scooby Doo Mistery Incorporated (exibida na Cartoon Network) que Velma descobriu que gostava de meninas. Mais especificamente, de uma chamada Marcie Fleach, conhecida como “Água de Salsicha / Hotdog Water”.
Cabe aqui um parêntese, antes do detalhamento do que ocorreu em 2013. Desde a criação do desenho, em 1969, quando a intolerância era – talvez – maior do que hoje, a comunidade gay identificava Velma como lésbica.
O cabelo curtinho, roupas fugindo do estilo mais feminino de Daphne, mais força física e a falta de interesse em personagens do outro sexo eram algumas das características que eram apontadas como razão para esta identificação.
Além disso, no mundo dos sextoons e da pornografia baseada em desenhos e HQs, a personagem aparecia constantemente como bissexual. É famosa, por exemplo, uma paródia de Scooby Doo na qual a estrela Bobbi Starr transa com Salsicha. E com Daphne. E com Fred…
Tudo isso somado levou os produtores do live action de Scooby Doo, já em em 2002, a brincarem com a homossexualidade de Velma. O diretor James Gunn a colocou como gay no script, mas o estúdio vetou. Gunn deixou a personagem, então, ambígua, mas na versão que veio a público algumas cenas foram cortadas, talvez para evitar polêmicas.
Uma delas, porém, “vazou” e é amplamente conhecida: Velma (Linda Cardelini), meio bêbada e supostamente sob influência de um fantasma, canta “Cant take my eyes off of you” olhando para Daphne (Sarah Michelle Gellar). Que está ao lado de Fred (Freddie Prinze Jr). Mas, sim, é pra Daphne. Para evitar qualquer polêmica em decorrência do vazamento, na sequência do live action Velma ganhou um namorado.
Se descobrindo
De volta agora a quando Velma “saiu do armário”, em Scooby Doo Mistery Incorporated. A série de desenhos foi ao ar em 2010 e, na primeira temporada, Velma inicia um namoro secreto com Salsicha. Porém, os dois não engatam o romance, constantemente porque Scooby os interrompe.
O staff do desenho conta que recebeu muito feedback negativo do namoro, justamente porque muitos fãs já achavam que Velma era gay, além do que o casal vivia se magoando, e Velma tentava mudar Salsicha o tempo todo. Mas os escritores pediam aos críticos que esperassem o desenrolar da história.
Aos poucos, fica claro que Velma está confusa em relação ao relacionamento (e, destacam os escritores, em relação a namorar meninos). Então, na segunda temporada, a personagem Marcie – que na primeira temporada apareceu como vilã – reaparece e as duas passam a estar coladinhas o tempo todo. Não há, é bom deixar claro, nenhuma cena explícita entre as duas – só muitos abraços, danças, intimidade, amizade, parceria, conversas lado a lado no sofá, na cama…
E, se ainda restava alguma dúvida (para a comunidade LGBTQI+ e para quem olhava o desenho com atenção não havia nenhuma), o produtor e supervisor do desenho Tony Cervone abriu o jogo com todas as letras anos depois, em 2020:
“Eu disse isso antes, mas Velma em Mistery Incorporated não é bi. Ela é gay. Nós planejamos com antecedência que ela agiria de uma forma meio estranha quando namorava Salsicha porque era um relacionamento errado para ela, mas ela não conseguia entender o porquê. Há dicas sobre isso no episódio com a sereia e se você assistir a todo o arco com Marcie fica tão claro quanto podíamos deixar na época. Não acho que Marcie e Velma tiveram tempo para mostrar seus sentimentos durante as aventuras que eram mostradas, mas olhando em retrospecto é claro que elas eram um casal. Talvez alguém não goste disso, mas era nossa intenção.”
No episódio da sereia, citado por Cervone, Velma fica mito interessada por uma sereia, de quem sente ciúme e a quem se refere como “amiga especial.” Quando é revelado que a sereia é uma mulher de verdade e casada com um outro personagem, um cientista, ela fica extremamente decepcionada.
O também produtor Mitch Watson é outro ressalta que Velma estava descobrindo a própria homossexualidade na série, entendendo a si mesma. “E parte disso era mostrar as reações dela no relacionamento com Salsicha, que ele não estava dando a ela o que ela queria, mas há um ponto em que ela se toca que não era ele o problema e sim o fato de que ela estava procurando no lugar errado”, diz.
Ele conclui: “No episódio da sereia, ela percebe que garotos não são o que ela quer e, na sequência, aparece com Marcie Água de Salsicha. No final da série nossa expectativa era que as pessoas entendessem que as duas continuavam juntas e Velma finalmente estava em paz com quem ela realmente era. Naquela época não podíamos falar abertamente sobre isso e ponto final, foi há uma década atrás. Mas é óbvio se você olhar, especialmente após o episódio da sereia e do episódio de Velma e Marcie conversando na cama no final.”
E o desenho novo, é bom?
É ótimo, e o fato de Velma ser abertamente gay nele é apenas um detalhe, que por sinal rende cenas muito engraçadas. Resumidamente, o desenho (lançado em outubro na HBO Max e disponível em outras mídias) a aventura se desenrola com mais um caso desvendado pela turma. Porém, examinando a fantasia do vilão, Velma se depara com uma fibra diferente e, revendo os casos passados, descobre que a mesma fibra está presente em absolutamente todas as fantasias, uniformes e armaduras utilizadas pelos bandidos que eles enfrentaram.
Investigando a fundo, eles chegam a Coco Diablo, a designer que tornou possível que todos os caras ruins executassem seus planos e a colocam em cana. Acontece que, sem Coco para fornecer os equipamentos, não há mais mistérios para serem investigados e a turma – em especial Fred – cai em depressão.
Até que, após indas e vindas, todos os vilões escapam da moderna cadeia onde se encontravam e os meninos enxeridos terão não só que recaptura-los como descobrir quem está por trás de tudo. Coco Diablo, que ajuda a turma a investigar, é também uma das principais suspeitas.
Há inúmeros destaques bacanas na aventura, mas para enumerar apenas alguns:
– A Trilha sonora é ótima, inclusive com uma ótima versão da música tema para quando não há mais vilões e uma outra excepcional para a remontagem da Máquina do Mistério (em determinado ponto do desenho, o clássico furgão é destruído!);
– Os vilões mostrados são mesmo de antigos desenhos, quem assiste Scooby Doo há mais tempo vai (re)lembrar de todos, até mesmo do primeiro, o clássico Mr. Wikles, do episódio número 1 !;
– O traço do desenho está ótimo, rendendo piadas visuais que garantem boas risadas;
– Os pontos fortes dos personagens são bem explorados, o que inclui a eterna fome e parceria estilo pastelão de Salsicha e Scooby; o narcisismo de Fred (há uma piada ótima com o espelho do carro), a inteligência charmosa de Velma e uma boa sacada sobre Daphne ter a percepção – e muita gente que assiste também – de ela ser decorativa e ser designada apenas para tarefas inúteis, o que Fred vai brilhantemente provar que não é verdade;
– A paixonite de Velma tem momentos fofos com ela querendo impressionar e principalmente com a vergonha que a faz ficar quente e embaça as lentes dos óculos – quando ela descobre que é correspondida por Coco Diablo, eles chegam a derreter, gerando o eterno bordão da personagem: “Meus óculos! Eu não enxergo nada sem meus óculos”;
Por fim, vale lembrar que o desenho não coloca o fato de Velma ser gay como nenhum tipo de destaque, defeito ou qualidade. Não se trata de nenhuma bandeira a ser levantada, contra ou a favor de ninguém, mas simplesmente do fato que há pessoas que gostam de meninos, outras que gostam de meninas, dos dois, de ninguém… e é muito bacana que todas possam se ver representadas de maneira normal em desenhos, filmes e HQs.
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