Cinzas da Memória: uma noite (terrível) no museu

Em 2 de setembro de 2018, a cultura – e em especial a memória – do Brasil foi vítima de uma das maiores catástrofes que se tem notícia até hoje.  Naquela noite de domingo, o Museu Nacional do Rio de Janeiro foi tomado pelo fogo, que destruiu 85% do acervo (formado por 20 milhões de itens entre documentos, objetos, fósseis, múmias, mobiliário, coleções de arte e estudos científicos).

Neste mês de abril de 2025 o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou um novo investimento de R$ 50 milhões no Museu, previsto para reabrir em 2026.  A prioridade no uso do valor será a recuperação do crânio de Luzia, fóssil humano mais antigo do Brasil que foi danificado nos escombros. Outras duas doações – que somadas dão o mesmo valor – já foram encaminhadas pelo BNDS à instituição em anos anteriores, mas o que foi destruído pelo fogo tinha um valor incalculável e não pode ser reposto. Ironicamente, ficará apenas na memória e em registros de imagens feitas no local.

A catástrofe de 2018 é justamente o cenário da HQ Cinzas da Memória, escrita e desenhada pela quadrinista Luma Rodrigues. Em um roteiro muito bem conduzido, Luma utiliza a história pessoal da protagonista Tainara, uma pesquisadora que na HQ se utilizava dos acervos destruídos pelo fogo, para destacar a importância não só do Museu e de tudo que ele abrigava, mas da importância de um povo ter acesso e cultivar a própria memória.

Segundo a autora, a ideia de colocar a protagonista como pesquisadora foi personificar todos os pesquisadores que tinham trabalhos relacionados ao acervo e que foram perdidos. Neste sentido, o trabalho de Tainara se dava justamente no Centro de Documentação de Línguas Indígenas, onde havia até mesmo gravações antigas de línguas que eram faladas no Brasil e já desapareceram – hoje há mais de 200 idiomas falados no país além do Português, mas eram mais de 600 quando os portugueses chegaram em 1500.

A própria Tainara, como os leitores descobrem nas primeiras páginas da história, tem problemas com memórias perdidas e, conscientemente ou não, busca pelas próprias origens. E vai encontrar algumas delas de maneira inesperada. Quando o Museu pega fogo ela, que já estava fora do prédio, retorna para tentar salvar a pesquisa que estava fazendo.

Intoxicada pela fumaça, ela desmaia e, em meio às chamas, acaba sendo ajudada por figuras históricas que faziam parte do acervo do Museu Nacional, que – como no filme Uma Noite no Museu – ganham vida (para ela) e a ajudam a encontrar uma saída, ao menos para uma das questões que a afligem.  Mas, diferentemente do filme protagonizado por Ben Stiller, em Cinzas da Memória não há espaço para comédia.

O drama do incêndio, por sinal, é muito bem trabalhado por Luma Rodrigues tanto no roteiro quanto na arte. Até o momento do incêndio, por exemplo, a HQ era exclusivamente branca e preta, mas a partir dali o vermelho passa a tomar conta dos desenhos.

Em uma página dupla,  ela mostra itens de valor incomensurável que estavam no Museu sendo alcançados pelas chamas por meio dos requadros, que vão se tornando vermelhos de maneira crescente. A ilustração da fachada do Museu pegando fogo e os rostos/memórias se misturando às flamas também é impressionante. E entristecedora.

Para ajudar a pesquisadora Tainara dentro do Museu, aparecem figuras como Domingos Sodré (ou Babá Domingos), escravizado que lutou pela Independência do Brasil em troco de uma alforria que nunca veio; a já citada Luzia e até mesmo uma indígena com uma criança de colo e outra conduzida pela mão, representando as únicas múmias indígenas encontradas até hoje no Brasil – que ficavam Museu e foram destruídas no fogo.

Mais do que lembrar a catástrofe e o quanto nela foi perdido, Cinzas da Memória é um alerta para a importância de se conservar a história de um país (aliás, mais de um considerando-se que o acervo tinha peças  de outras nações), dos diversos povos e até mesmo a própria história, como Tainara acaba descobrindo ao fim da aventura. Nas palavras de Babá Domingos: “O esquecimento é como um veneno, filha, que se joga na terra pra matar a raiz de uma árvore.”

E para garantir ainda mais que ninguém se esqueça do que aconteceu, foram incluídas após a aventura fictícia três histórias curtas de duas páginas com versões quadrinizadas de entrevistas realizadas por Luma na pesquisa para produção da HQ.

A primeira, coma antropóloga Maria Isabel Dessano, tem arte da própria autora Luma Rodrigues, que além de cartunista é bacharelem design e mestranda em Mídias Criativas pela UFRJ. A segunda é do funcionário Edson Vargas da Silva, que tinha mais de quatro décadas de museu na ocasião do incêndio, com desenhos de Alex Genaro.

Por fim, encerra a revista , no traço do quadrinista Lipe Diaz e cores de Geraldo Filho, o depoimento de Antônio Carlos Gomes Lima, que trabalha na  Bibilioteca Central do Museu Nacional. A versão digital do gibi, que foi produzido com apoio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Edital Retomada Cultural RJ2, pode ser baixada em pdf gratuitamente clicando aqui.

A tragédia do Museu Nacional, fundado em 1818 com o nome de “Museu Real” e considerado um dos maiores museus de história natural e antropologia de todo o continente, foi causada pela negligência do poder público. Sem verbas adequadas, a instituição sofria com problemas estruturais e falta de manutenção – o fogo teria começado por causa de um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado e se alastrou rapidamente.

Para piorar ainda mais a situação, os hidrantes locais estavam sem água e os bombeiros tiveram que bombear água do lago da Quinta da Boa Vista e pedir o auxílio de caminhões pipa, o que teria atrasado o combate ao fogo em pelo menos 30 minutos.

NOTA DO CRÍTICO: Esse é bom

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

2 comentários

  • Luma Rodrigues, além de uma pessoa super talentosa, é muito a favor da conservação da natureza, da nossa História é contra a qualquer tipo de preconceito.
    Uma pessoa íntegra e com grande chance de sucesso (aliás, muito merecido).
    Mundo HQ, obrigada pelo apoio e reconhecimento da obra da autora.
    Ass: Marcia Oliveira

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