O que aconteceria se alguém tivesse solicitado para o escatológico poeta Augusto dos Anjos escrever uma fábula para crianças baseada no conto mais conhecido de Charles Perrault? Provavelmente algo muito parecido com o que ocorreu quando a editora japonesa Koushinsya pediu a Junko Mizuno que desenhasse uma versão própria de Cinderela. O resultado foi o mangá Cinderalla, uma mistura absurda de grotesco e fofinho.
“Por algum motivo, acharam que eu não conseguiria escrever uma história, por isso acharam melhor que eu fizesse algo baseado em material mais antigo, como um conto de fadas”, conta Junko, nascida em 1973 e que já veio ao Brasil em 2011, na Rio Comic Con. O resultado provavelmente não foi o que a editora esperava, mas ainda assim conquistou uma enorme quantidade de fãs – em especial adolescentes do sexo feminino – no Japão e em diversos países.
A história tem um humor um tanto macabro, com um quê da Noiva Cadáver de Tim Burton, mas com uma dose muito maior de surrealismo e vísceras. Assim como no conto de Perrault que foi popularizado pela versão da Disney lançada originalmente em 1950, a garota Cinderalla perde o pai. Porém, o casamento com a madrasta malvada ocorre depois que ele está morto. Ou morto-vivo: ele volta para casa como zumbi, acompanhado da esposa e de duas enteadas tão zumbis quanto ele.
Cinderalla, então, passa a trabalhar como uma escrava para saciar o apetite da mãe e os desejos das meio-irmãs – que incluem a costura de um sutiã tamanho gigante para uma das meninas. Ah, sim, vale lembrar que o leve erotismo comum aos mangás está presente na HQ(em especial nos desenhos de Junko, que parece ter uma certa fixação por seios nas histórias que cria) e também rende certas piadas de gosto duvidoso que (alguns) adolescentes costumam gostar.
Este humor escatológico juvenil, por sinal, é o forte de Cinderalla e dá as caras a todo momento: seja nas receitas de espetinhos (não pergunte) preparados pelo pai da moça ou até na cena antológica da escadaria. Em vez de perder o tradicional sapatinho de cristal, a heroína, temporariamente transformada em morta-viva pela fada-madrinha para poder ir ao baile do príncipe zumbi (!), perde um…globo ocular.
E, se no conto original todas as moças tentam experimentar o sapatinho, fica por conta e risco do leitor deste texto imaginar o que fazem as moças do mangá para provar ao príncipe que uma delas deve ser a escolhida. Apesar da nojeira do argumento, os desenhos não vão dar ânsia em ninguém. Pelo contrário, são bastante atraentes, pois juntam o característico traço de mangá fofinho com cores vibrantes, num resultado meio arte retrô.
Com tantas mudanças no conto original, a autora Junko Mizuno – que ficou famosa não só pelos mangás como por incursões bem sucedidas que faz no desenho de moda e na música eletrônica – fez questão de se manter fiel a pelo menos uma característica dos contos de fada modernos: o final feliz.
Cinderalla, nojenta ou não, acaba vivendo (ou seria morrendo?) feliz para sempre. Junko e a editora também ficaram felizes com o resultado, tanto que lançaram as versões grotescas de João e Maria e A Pequena Sereia.
A autora ainda lançou o álbum Hell Girls (Garotas do Inferno), que segue a mesma linha de misturar desenhos fofinhos com muito sangue. No Brasil, Cinderalla – no original, Mizuno Junko no Shinderāra-chan – foi lançada em 2006 pela Conrad Editora (146 páginas coloridas, R$ 29,50).
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