Chico Bento – Arvorada: êta belezura, sô! Orlandeli dá uma aula de maestria e sensibilidade na nova Graphic MSP

No prefácio de Chico Bento – Arvorada, 15º título do selo Graphic MSP (aquele em que autores diversos escolhem um personagem de Maurício de Sousa e tem toda liberdade pra contar a história que quiserem), o próprio Maurício refere-se à arte do cartunista Orlandeli com uma expressão em caipirês: “é uma belezura, sô!”

O pai da Mônica não poderia estar mais certo, porém a afirmação vai além da arte: o enredo criado pelo autor convidado é de uma inteligência e uma sensibilidade ímpares. É difícil escolher um melhor entre melhores, mas com certeza Arvorada está no topo da lista entre os quinze diferentes títulos lançados desde que o selo estreou, em 2012.

O título “Arvorada” tem um duplo sentido, que remete tanto à florada do ipê-amarelo quanto ao nascer de um novo dia, a alvorada, “naturarmente” dita também em bom caipirês. s relação entre as duas coisas aparece logo no começo da história, quando vó Dita (que, nunca é demais lembrar, é inspirada pela avó real de Maurício) convida Chico pra ver o ipê florido e o menino não pode porque tem mais o que fazer. No dia seguinte pela manhã, o garoto vai logo cedo apreciar a beleza da árvore, mas é tarde demais.

As flores já estão no chão e vó Dita aproveita para dar uma terna lição ao neto: tudo na vida é efêmero. Chico então promete que nunca mais vai perder uma arvorada ao lado da avó – e é a relação dos dois e a efemeridade da vida que dá o tom ao restante da obra.

Antes de entrar mais no roteiro – e fica aqui um aviso a possíveis spoilers após este parágrafo – vale falar daquela belezura destacada por Maurício. Com seu traço marcante, Orlandeli se supera em diversos momentos dessa graphic. Não faltam exemplos da beleza e ousadia estética que o autor imprimiu à Arvorada.

Da página dupla do Ipê pelado com as flores nos quadrinhos debaixo, já na sequência da história, ao salto cinematográfico de Chico no rio (que termina com uma bela cena dele afundando num equilíbrio Yin-Yang), passando pela pescaria do caipira com o primo Zé Lelé no qual a dupla está centralizada na página e as varas se projetam pra fora.

Contudo, se a arte fala aos olhos, o roteiro fala à alma, algumas vezes de maneira devastadora. Quando a avó adoece, Chico vê a vida assolapada por uma dor que já conhece e que Orlandeli constrói com maestria: um crescente de lembranças das lições ternas e inteligentes que o menino recebeu da matriarca que culminam na noite em que o médico dá más notícias sobre as possibilidades de recuperação. Ao ouvir o prognóstico, Chico acessa outra lembrança – a da irmãzinha Mariana, que morreu bebê (numa HQ clássica de 1990, “Uma estrelinha chamada Mariana”), e murmura quase sem forças um “de novo, não”.

O leitor permita aqui um depoimento pessoal: em mais de quarenta anos lendo quadrinhos, o autor deste texto já teve experiências impactantes – como três noites sem dormir direito pensando na ignorância humana após ler Gen-Pés Descalços – mas nunca antes um único quadro de uma HQ tinha trazido lágrimas aos meus olhos e deixado o coração apertado como este. Mais uma vez, empresto as palavras de Maurício no prefácio: “O danado do Orlandeli, caipira como eu, tratou de me emocionar em um novo patamar.”

A partir desta cena tocante, a HQ dá uma guinada. Faltava um único elemento para Orlandeli ser fiel às raízes de Vó Dita nas HQs originais e é aqui que ele aparece: o folclore. As lendas tão contadas por ela entram em cena – Lobisomem, Boitatá, Saci e Curupira entram em cena e um preocupado Chico Bento acha que eles estão ali para levar a avó, algo que ele pretende impedir com unhas e dentes. As dele e as do porquinho Torresmo.

Sem contar o que acontece, basta dizer que se há algo que os “coisa-ruim” têm pela anciã é respeito, afinal de certa forma são as histórias dela que os mantêm vivos na cabeça do povo simples de Vila Abobrinha. E mais uma vez Orlandeli, de quem ninguém duvidava da capacidade de ver além pelo menos desde o lançamento do genial (SIC), costura a história e chega de novo no Ipê Amarelo.

Poético, bonito, tocante, o final da HQ faz jus a toda ela e o leitor acaba entendendo que as lembranças de Chico não estavam ali à toa, que a presença e a personalidade da avó definitivamente ajudaram a formar quem Chico Bento se tornou. E que tudo na vida realmente passa com a rapidez e a beleza de uma arvorada, mas deixa marcas tão inesquecíveis quanto a bela florada de um ipê amarelo…

Extras

Como é tradicional nas Graphic MSP, Chico Bento – Arvorada traz extras com ideias, estudos e esboços do visual dos personagens feitos à mão e as diversas etapas do processo de desenho e cor feitas pelo autor. Estudos da capa, um histórico dos personagens e a biografia de Orlandeli complementam o material. A publicação, de 96 páginas, é encontrada nas tradicionais versões capa dura, com preço de capa R$ 36,90, e brochura, por R$26,90.

NOTA DO CRÍTICO: Excelente!

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