Em janeiro deste ano, o assunto virou tema de diversos blogs e suscitou verdadeiros libelos à editora Panini: em Batman 98, na página 34, um carcereiro refere-se ao vilão Rei perolado do Crime (valha-me, Jerry Robinson!), como “petralha”. No original em inglês, a palavra utilizada foi “nasty” (asqueroso, nojento, imundo, sórdido). Em tempos de polarização política no Brasil, foi o suficiente para a editora ser acusada de politizar o personagem – com direito a texto de Luís Nassif chamando os tradutores de fãs da Veja – e, do outro lado, defensores do termo acusando a esquerda de fazer patrulhamento ideológico (entre estes o próprio criador da palavra “petralha”, Reynaldo Azevedo).
Petralha, para quem não sabe, é termo pejorativo formado pelas palavras “petista” e “metralha” (advinda dos famosos Irmãos Metralha, criados para a Disney pelo genial Carl Barks). Confusão armada, a editora Panini apressou-se a ouvir o tradutor Caio Lopes e trouxe para o caso a seguinte explicação: o termo, por mais que tenha surgido com características políticas, ganhou outros contornos.
Disse em nota: “A Panini considera o termo ‘petralha’ uma gíria que vem se popularizando no Brasil e, independente da origem do termo, não é mais utilizado no linguajar popular apenas com conotação política, mas como sinônimo para ‘asqueroso’, ‘nojento’ etc. A empresa ressalta que não tem qualquer intenção de utilizar seus produtos editoriais de entretenimento para fins políticos.”
Mais ainda, a editora admitiu que errou ao “pressupor que uma gíria que já perdeu o seu caráter político em alguns lugares, não o tenha perdido em todos” e finalizou dizendo: “Não estávamos querendo tecer nenhuma crítica a partido algum. Acho que já deixei isso bastante claro. Só não entende quem não quiser.” Muita gente, claro, não quis.
É difícil saber se em sua vida pessoal o tradutor Caio Lopes tem alguma identificação político-ideológica com este ou aquele partido. E isso nem interessa. O fato é que, por mais que a palavra já tenha sido dicionarizada sem cores políticas (pelo grande dicionário Sacconi), a Panini acerta ao dizer que pressupôs de maneira equivocada que essas cores não mais existem. E foi justamente por isso que a tal tradução acabou sendo politizada, para todos os lados possíveis. A realidade é que – propositadamente ou não – a tradução foi infeliz.
É natural e comum que os tradutores de quadrinhos tentem adaptar o palavreado das HQs para a cultura local, na tentativa de tornar a história mais atual e/ou de aproximá-la do público. Neste sentido há erros e acertos históricos. Basta retroceder para tempos menos globalizados para encontrar vários exemplos.
Quando o inglês era, digamos, menos universal, Superman chegou ao Brasil morando em Pequenópolis em vez de Smallville e tendo como namorada Míriam Lane, já que Lois – temiam na época – era muito parecido com Luis, o que talvez colocasse a masculinidade do herói em dúvida.
Huey, Duey e Lowie, sobrinhos do Pato Donald, eram Tico, Nico e Chico antes de se tornarem Huguinho, Zezinho e Luizinho, assim como Pateta era Dippy e Minnie era Ivete. Ziraldo, por sua vez, foi extremamente feliz ao traduzir os Peanuts para “Minduim”.
Menos sorte teve o tradutor de Batman que o chamou de Morcego Negro e transformou Gotham City em “Riacho Doce” nas primeiras histórias publicadas por aqui e, pior ainda, o gênio criativo que resolveu batizar Popeye (olho saltado, em português) como “Brocoió”. Por sorte, o original em inglês não demorou a ser adotado também em terras brasileiras.
Se casos como esses hoje podem ser vistos como pitorescos, houve também outros incidentes que, se não mexeram com política, trouxeram à tona discussões sobre preconceitos – aqui se destaca um caso também bastante citado nos blogs , do gibi do Tex no qual o ranger chama um homem negro de “macaco” ao socá-lo e o termo em italiano nem se aproxima disso.
Traduções, como se vê, podem ser complicadas, especialmente em gibis, que são produzidos em quantidade enorme lá fora e trazidos também as pencas para cá, dando muito trabalho aos profissionais poliglotas. Talvez fosse o caso de as editoras criarem normas para suas traduções, manuais de redação que ajudassem os gibis a serem atuais e utilizarem gírias quando necessário, mas sem escorregadelas nem exageros.
E também deveria haver menos exagero em certas cobranças: achar que os leitores de Batman terão suas opiniões políticas influenciadas ou construídas por um termo mal utilizado em um balão é exceder na dose e tão errado quanto a escolha do próprio termo.
Em tempo: a charge utilizada no topo desta esta página entitula-se “Santo factóide tucano, Batman”, é de autoria do cartunista Paixão e foi publicada na Gazeta do Povo (PR), ironizando uma situação política em 2010. Curiosamente, os fãs de Batman não protestaram contra o jornal.
(publicado originalmente em março de 2011)
Comentar