150 anos de Santos Dumont: a História do pai da aviação…em quadrinhos

“A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou parabéns em meigo tom
Brilhou lá no céu mais uma estrela
Apareceu Santos Dumont”

 

Em 20 de julho de 2023 completaram-se cento e cinquenta anos do nascimento de Alberto Santos Dumont, o pai da aviação. A história deste brasileiro genial – aeronauta, esportista e inventor autodidata – deveria ser conhecida por todo brasileiro desde os bancos de escola, mas infelizmente poucos sabem mais da vida de Santô, como era chamado em Paris, além do fato dele ter inventado o avião.

Mais especificamente o 14 Bis, primeira aeronave motorizada mais pesada que o ar a ter realizado um voo amplamente documentado e homologado, em outubro de 1906, na cidade de Paris – em oposição ao voo do Flyer dos irmãos Wright em 1903, ocorrido em ambiente sigiloso e sem documentação e testemunho públicos.

Esse fato  e muitos outras que envolvem Santos Dumont podem ser conferidos desde 2005 em  Santô e os pais da aviação, uma ampla e genial História em Quadrinhos de autoria do cartunista Spacca. A obra de 168 páginas, inicialmente publicada pela Cia. das Letras, é fruto de décadas de dedicação do autor paulistano, que desenhou Santos Dumont pela primeira vez em 1979 e desde então se tornou um aficionado pesquisador da vida do aeronauta.

A HQ – na verdade, uma biografia em forma de Graphic Novel – se inicia na juventude do mineiro Dumont, que nasceu em Cabangu em 1873, mas na obra já é retratado inicialmente com 17 anos, na fazenda de Ribeirão Preto onde o pai sofreu um acidente e ficou hemiplégico (teve um dos lados do corpo paralisado).

A partir dali, os leitores acompanham não só a trajetória de Dumont – que se muda para Paris inicialmente com a família e investe tudo o que pode em invenções (seguindo o conselho do pai para não se tornar político ou advogado, pois “o que move o mundo é a mecânica”) como a de diversos outros pioneiros da aviação.

Diga-se de passagem, Spacca não endeusa Dumont nem entra na polêmica de quem realmente inventou o avião, apenas expõe os fatos registrados: cabe ao leitor julgar o que ocorre. Mas entre os fatos estão, sim, não só o de que o voo dos estadunidenses não foi homologado nem teve testemunhas idôneas, como também outras diferenciações entre os aeronautas retratados.

Enquanto em 1901 Santô destinara metade do prêmio de 100 mil francos por contornar a torre Eiffel em um dirigível aos pobres de Paris (usando o restante para cobrir custos e pagar colaboradores),  em 1905 os Wright  -que eram de família pobre em oposição à endinheirada de Santos Dumont, é bom registrar – tentaram sem sucesso vender o projeto do Flyer para a França por um milhão de francos.  

Enquanto em 1908 os Wright processavam a empresa de Alexander Graham Bell por usar um sistema que diziam ter sido desenvolvido por eles em aeronaves, em 1909 Santos Dumont colocava a patente da sua charmosa aeronave Demoiselle à disposição de qualquer um que quisesse construir a aeronave.

“Assim foram construídas dezenas de Demoiselles pelo mundo todo, de Berlim ao Missouri (…) Roland Garros, o ás da primeira guerra mundial, aprendeu a pilotar em uma Demoiselle. Garros chamava Santô de ‘chair maitrê’ (querido mestre)”, registra Spacca.

Vale destacar que o autor mostra nos quadrinhos diversos outros pioneiros da aviação – tanto que antecederam quanto os que vieram depois do brasileiro – e muitos outros aspectos e minúcias da personalidade de Santos Dumont, e de como o brasileiro se tornou enormemente conhecido na França e na Europa antes mesmo do 14 Bis.

Não só pelos inúmeros recordes quebrados, as aventuras em balões e criação de dirigíveis, mas também por ter sido “adotado” como alvo preferencial do caricaturista Sem, que o retratava na mídia parisiense e o tornou celebridade em toda a alta e baixa sociedade.

“Você nasceu para brilhar, mon ami!! Não é o hidrogênio quem vai mantê-lo no ar, é a opinião pública!”, diz a versão em quadrinhos do cartunista parisiense, cujo verdadeiro nome era George Goursat.

Spacca também mostra encontros de Dumont com famosos como a princesa Isabel (já não mais princesa na época), o presidente americano Ted Roosevelt e Thomas Edison, inventor da lâmpada.

Também é possível conferir  o gênio forte (e às vezes um pouco arrogante, diga-se) de Dumont em alguns momentos. Bem como o tédio com as inúmeras recepções que teve no Brasil quando foi aclamado herói (nas quais suportava discursos enormes e repetitivos, e ainda era questionado porque não havia trazido um dirigível/balão “na mala”) em contraste com a alegria em relação a manifestações mais simples. É o caso do sambinha de Eduardo das Neves que abre este texto, com o qual o aeronauta se encantou.

Também não faltam na história as excentricidades, como o chalé construído em Petrópolis com degraus recortados de modo que só se podia entrar na casa com o pé direito.

Com muita habilidade no roteiro e desenhos maravilhosamente bem-feitos (vale destacar que todas as aeronaves e máquinas voadoras são mostradas com designs perfeitos em relação às originais, algo que em si só já torna a obra memorável), Spacca registra ainda outros fatos históricos importantes envolvendo Santô.

Apenas para citar dois deles: primeiro, o fato de ele ter ganho do joalheiro Cartier um relógio de pulso, esclarecendo um mito que ronda em inúmeros lugares e histórias, o de que Dumont inventou esse tipo de relógio. Como mostra o próprio Spacca, oficiais da marinha alemã já o usavam desde 1890. Dumont, porém, como celebridade da época, foi quem popularizou o uso.

 Segundo, o momento em que, depois de ter a casa invadida por militares temerosos de que ele estivesse de alguma forma colaborando com os alemães na primeira guerra mundial, em 1914 Dumont simplesmente se revolta com a França, à qual ofereceu todas as máquinas que desenvolveu para usar na guerra.

Em um surto, queima todos os documentos e projetos que mantinha em casa – supõem-se que neste episódio muitas ideias originais se perderam para sempre…

Sensível, Spacca faz uma transição neste ponto da história justamente para finalizar de maneira mais poética, fazendo o corte para a infância de um menino sonhador que conquistou os céus.

A morte de Santos Dumont – que aparentemente sofria de esclerose múltipla, o que o levou a uma aposentadoria precoce aos 36 anos, internações voluntárias e finalmente ao suicídio, em 23 de julho de 1932, no Guarujá – é apenas citada um pouco antes, rapidamente, en passant. E acertadamente, diga-se.

Não bastasse todo o brilhantismo do roteiro e dos desenhos, Spacca ainda premia os leitores ao final do livro com rascunhos, uma biografia repleta de livros sobre Santos Dumont e outros pioneiros da aviação, e ainda um belíssimo quadro de cronologia. Nele é possível conferir – e contrastar – a cada período o que faziam Santos Dumont e os demais aeronautas, e quais eram os fatos marcantes no mundo de então.

 

O Brasil, infelizmente, tem o péssimo hábito de não valorizar o suficiente grandes mulheres e homens da própria história. Spacca, em Santô e os pais da aviação, faz isso com primazia. Em tempos em que o governo do Estado de São Paulo avalia banir livros em papel e adotar apenas obras digitalizadas, esta jornada de Santos Dumont em quadrinhos deveria ser bibliografia obrigatória nas escolas.  

NOTA DO CRÍTICO: Sensacional

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