Relíquia

Mundo HQ

Marcatti já é um clássico

O cartunista paulistano Francisco Marcatti Júnior é frequentemente chamado de Augusto dos Anjos dos quadrinhos, uma referência à escatologia e ao grotesco presentes na maioria absoluta de suas HQs. Mas coube a outro escritor, um português, ser o primeiro da lista de homenageados por Marcatti com a adaptação de um livro para o traço peculiar do cartunista: Eça de Queiroz, cuja obra A Relíquia foi magistralmente desenhada pelo pai de Fráuzio e companhia ilimitada.

Aos 45 anos, dos quais mais de 30 dedicados aos quadrinhos, Marcatti nunca havia lido Eça de Queiroz antes de enfrentar o desafio de transformar em HQ um dos mais significativos livros do autor, realista do século XIX que é considerado um dos mais influentes escritores da língua portuguesa. Depois da leitura, porém, descobriu-se um apaixonado pelo autor. Em entrevista exclusiva, o cartunista considerado um dos mestres do quadrinho underground brasileiro conta um pouco sobre esta paixão e a obra que levou um ano e sete meses para ficar pronta.

A escatologia e as tramas, digamos, nojentas, são uma marca registrada das suas histórias, a ponto de você ser chamado de Augusto dos Anjos dos quadrinhos. Em A Relíquia, porém, você mantém as características de seu traço, mas não há nenhuma escatologia…
Marcatti –A escatologia não é fundamento para mim. As pessoas costumam me perguntar de onde eu tiro isso, mas sinceramente não tenho menor idéia. Quando crio uma história, penso na relação dos personagens, em seus perfis, em onde será a história…uma coisa tipo novela das 6. E de repente, não sei de onde, a escatologia aparece, flui naturalmente. Em A Relíquia a história fluiu naturalmente sem escatologia e não senti menor falta. Aliás, mesmo que sentisse não colocaria nada, pois é uma história que não é minha e que é bem-construída, tem personagens fortes, bem elaborados. Se eu colocasse escatologia aí não seria um autor que gosta de escatologia, mas sim um obcecado pelo tema. E isso eu não sou.

Você já tinha lido Eça de Queiroz antes de adaptar a obra? Para o vestibular, talvez?
Nunca tinha lido e fiquei impressionado. É um livro magnífico. Mas não tinha lido antes, até porque não fiz faculdade e estudei em escola de padres. E nenhuma escola católica adota Eça de Queiroz (rs). Por que será?

O que deu mais trabalho na adaptação?
A linguagem. A primeira coisa que eu pensei em fazer foi reescrever o texto, pois trata-se de ima adaptação e não de uma quadrinização da obra. Quis recontar a história e procurei fazer um texto que tivesse o ar clássico do Eça, mas que ficase em um meio termo entre o Português de Portugal e o do Brasil. Fiquei muito tempo elaborando isso com o pessoal da editora. Aqui no Brasil, por exemplo, usamos muito “você”, muito gerúndio, verbos na terceira pessoa, e lá não. Essa foi a grande dificuldade. Não queria que fosse um texto coloquial, mas também não queria nada muito pesado. Do texto original, mantive três trechos na íntegra, em balões ou recordatórios. Em um deles o autor utiliza quatro ou cinco gerúndios, mas faz isso com propriedade, do jeito que deve ser feito. Descobri como usar o gerúndio de verdade.

Você parece ter se entusiasmado bastante com o livro, não?
Sim, porque aprendi muito. Aprendi língua portuguesa, aprendi a desenvolver bons personagens, a fazer uma boa história. Se o leitor tiver com a HQ metade do prazer que eu tive com o livro, já ficarei muito satisfeito.

Quanto tempo você levou para concluir o trabalho?
Um ano e sete meses. Uma coisa que geralmente é rápida para eu fazer é o desenvolvimento de roteiro, mas nesse levei três meses só na estruturação. Depois foram outros três meses de idas e vindas na revisão, por causa da linguagem. Nesse processo a editora ajudou muito e eu fiquei apaixonado pela nossa língua.

Você teve alguma reação por parte de fãs de Eça de Queiroz?
O prefácio foi escrito (por Eduardo Montechi Valladares, doutor e mestre em História Social pela USP) após o livro ter sido desenhado. Eu nem sabia o nome do prefacista, que tem dissertação de mestrado sobre Eça de Queiroz, e o conheci pessoalmente no lançamento da HQ. Ele disse que nunca foi afeito a quadrinhos e quando leu a adaptação gostou bastante. Senti, então, que consegui guardar a importância da obra na adaptação. Para mim isso foi um tremendo elogio.

Do jeito que você gostou, pode-se esperar novas adaptações literárias no traço de Marcatti?
Sim, a editora e eu já estamos estudando de quem será a próxima obra que eu farei adaptação. Acho que o importante não é ser um autor que tenha similaridade com o meu trabalho, mas sim pegar um autor que me sensibilize. Por enquanto estou dando tiro pra todo lado (rs). Pensei em Victor Hugo (mas não Les Miserables, porque é muito grande) ou em Hermann Hesse, que li muito quando era moleque, mas não sei ainda. Minha idéia, de qualquer forma, em sempre alternar uma adaptação e um trabalho meu.

Neste caso, qual seria o seu próximo trabalho?
Minha idéia é relançar todas as HQs do Fráuzio em um único número, uma antologia que traria também uma história inédita, provavelmente na linha escatológica. Mas a escatologia é uma coisa que eu gosto muito, mas não procuro. Se eu penso antes, a história soa forçada, pobre. Acho que é influência de Henry Miller (rs).

Você também é conhecido por ter habilidades inusitadas, como matar cupins e fabricar guitarras. Como é isso?
Adoro fazer de tudo um pouco. Agora mesmo estou dando forma num braço de uma guitarra. E gosto de tocar blues. O que me atrai é a essência mecânica das coisas, saber como elas funcionam. Até por isso eu mesmo faço minhas ferramentas, faço tudo. Nos quadrinhos, quando vou desenhar, procuro descobrir sobre como o que eu vou desenhar funciona, como aquilo é. Isso me ajuda na hora de fazer a história.

Foi o que você fez, por exemplo, para recriar os cenários históricos que desenhou nA Relíquia? Tentou descobrir como eram os lugares, como as coisas funcionavam na época?
Procurei ver fotos das regiões da história, descobrir se elas mudaram, como eram. O Porto de Alexandria, por exemplo, mudou muito pouco desde a época da história. As casas e ruas de Portugal também foram fáceis de localizar, a Internet ajudou muito. Mas tive pouco acesso a imagens do oriente médio que mostrassem ruas, chão, móveis, ambiente. Só achei imagem de pontos turísticos. Então, no caso da Palestina, me apeguei ao clima, à atmosfera. Trabalhei mais efeitos de luz, terra, sol, poeira, como Eça descreve no livro.


A Relíquia. Obra de Eça de Queiroz, adaptação em quadrinhos por Marcatti. Conrad Editora, 224 páginas, R$ 32,00.

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

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