Sob o Olhar do Corvo
Diz a lenda que existe uma maldição sobre o personagem O Corvo, interpretado pela primeira vez no cinema por Brandon Lee, filho do artista marcial Bruce Lee. O próprio Brandon morreu durante as filmagens por causa de uma bala verdadeira que deveria ser de festim, e outros tantos que se envolveram com o Corvo tiveram a mesma sina.
Essa talvez fosse uma explicação simples e metafísica para a morte do desenhista Hermes Tadeu, considerado pela editora Marvel um dos maiores coloristas que já passaram pela “Casa das idéias”. Afinal, o próprio Hermes adorava O Corvo e levava em lugar de destaque de seu portfolio o belíssimo desenho que fez do personagem…
A explicação mais concreta e de uma realidade mais difícil de aceitar, porém, é esta: Hermes foi mais uma vítima aleatória da violência brasileira. É essa triste verdade que dá o tom de Sob o olhar do Corvo, biografia do artista assassinado em 2003 lançada pela irmã dele, Dalila da Silva.
Hermes T., como era conhecido, tinha apenas 25 anos quando foi morto na praia, em plena luz do dia, ao lado da namorada. O assassino, Rodrigo dos Santos Moreira, queria a máquina fotográfica do rapaz, que sequer esboçou reação.
A morte violenta, no auge da carreira (havia sido contratado como colorista do incrível Hulk há pouco tempo) chocou não só família e amigos como também toda a comunidade artística brasileira e boa parte da internacional. E, anos depois, foi esquecida entre tantos outros assassinatos que banalizam a verdadeira guerra civil que o país vive.
Por isso o objetivo principal do livro, diz Dalila, é justamente manter viva a memória de Hermes e, mais ainda, pedir por Justiça por todos os que sofrem destino semelhante.
“O canalha que matou meu irmão foi condenado a 33 anos e dois meses de cadeia, mas deverá sair com um sexto da pena, ou seja, só cumprirá cinco anos e dois meses…deverá sair na metade de 2009. O comparsa foi encontrado e está respondendo a processo, mas, mesmo que seja preso deverá cumprir dois anos de pena. É isso que valem nossas vidas no Brasil”, lamenta.
Sob o olhar do Corvo é muito mais que um relato da vida batalhadora de Hermes, garoto de família humilde que varava noites tentando aprimorar sua técnica e que obrigava pais e irmã a fazer as poses mais diversas para estudar feições, anatomia, luz e sombras. Trata-se do registro de um exemplo de vida e, ao mesmo tempo, de um grito de alerta em relação à impunidade que reina no Brasil.
O livro inclui reproduções de matérias de jornal e depoimentos de cartunistas que conheceram Hermes, além de um miolo colorido com reproduções das belas artes do colorista (como esta do Aranha aí ao lado). O texto em si, porém, ainda que compreensivelmente recheado de lamento e dor, é o que merece destaque.
Na maior parte do livro, Dalila narra duas histórias complementares, alternando a narrativa entre os capítulos. Ora fala sobre morte (conta o assassinato do irmão, as reações da família e do mundo artístico, a busca por Justiça), ora sobre vida: o crescimento de Hermes como artista, suas vitórias, amores, o trabalho, a relação com a família, o bom-humor e eterno otimismo de menino crescido.
Difícil não notar que a vida do Hermes era estranhamente marcada pelo misticismo. O artista tinha um lado um tanto quanto medium, via e tinha sensações muitas vezes premonitórias, a maioria atemorizante. Porém Dalila, sabiamente, não atribui a morte do irmão a nenhum tipo de karma ou pecado de outra vida a ser pago. Por mais místico que Hermes T. pudesse ter sido, sua vida acabou por uma razão nada metafísica.
E a vida de Dalila, por sua vez, continuou (de maneira nada fácil, como se vê no livro) e ganhou novos rumos: ela é, hoje, uma das muitas vozes que gritam contra a impunidade no País. Um grito que se mistura à vida de Hermes e ganha corpo nos últimos capítulos do livro, onde a autora conta seu envolvimento com a luta por Justiça.
Ela esteve, por exemplo, na sala do então ministro Márcio Thomaz Bastos, em março de 2006 – ao lado de diversos outros parentes de vítimas de assaltos, sequestros e balas “perdidas” – para apelar contra o fim (na prática) da Lei de Crimes Hediondos, declarada inconstitucional pelo STF. Em vão.
Hermes com certeza nunca será esquecido. Constantemente é lembrado e homenageado por outros artistas, a Marvel o elegeu como melhor colorista das páginas de Hulk de todos os tempos, a prefeitura de Cerquilho, onde ele dava aulas, instituiu o Troféu Hermes Tadeu para Desenho de Humor, dado anualmente a talentos que se inscrevem no salão local.
Mas isso é pouco. É preciso também que a morte injusta de Hermes seja lembrada constantemente, para que a luta contra a impunidade continue e um dia, quem sabe, seja efetiva. Nesse sentido, o livro de Dalila é fundamental, bem como os sites mantidos na Internet sobre o artista (www.hermestadeu.com e www.hermesporjustica.com ).
Sob o olhar do Corvo tem 148 páginas, custa R$ 18,00 e pode ser comprado pela Internet, no site do autor. Em tempo: o nome do livro não é meramente referência ao personagem interpretado por Brandon Lee. É muito mais uma ligação com o adágio lembrado por Dalila para se referir à impunidade reinante no Brasil: cria corvos e eles te comerão os olhos.
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