The Sandman: morte de personagem nas HQs teve protestos, funeral e até tese de mestrado na Unicamp

Em 1995, quando os quadrinhos de The Sandman estavam no auge, o autor Neil Gaiman optou por matar o personagem principal na edição 69 da série – que se encerraria no número 75, publicado no ano seguinte.

A “morte” gerou protestos e lamentos em mais de 40 países onde a série era publicada e houve até mesmo um funeral realizado via Internet com a participação de Gaiman – vale lembrar que na época a rede mundial de computadores era bem mais arcaica e restrita, e não haviam smartphones ou redes sociais, o que mostra ainda mais a força do personagem.

A morte de Sandman também foi tema de uma tese de mestrado defendida na Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp), defendida em 2002 pelo jornalista Dario “DJota” Carvalho:  A Morte do Herói – Introdução ao estudo de sobrevivência de modelos míticos nas Histórias em Quadrinhos.

“Personagens de histórias em quadrinhos morrerem não era algo novo, porém a  morte deles costumava ser determinada dentro de uma história para valorizar o herói ou simplesmente porque o personagem secundário já não tinha um papel significativo . Me chamou a atenção, porém, o fato  de que estavam acontecendo cada vez mais mortes de personagens principais, heróis. E, nas histórias em quadrinhos, os personagens podem viver para sempre, a maioria absoluta sequer envelhece”, conta Carvalho.

Disposto a descobrir o porquê do fenômeno – que impactava a um grande público leitor em todo o planeta (além de em muitos casos aumentar vendas de HQs) – ele estudou três casos emblemáticos: a brasileira Rê Bordosa (morta pelo autor Angeli em 1987), Superman ( que morreu em 1993 e ressuscitou pouco depois) e a de Sandman.

De maneira (bem) resumida, pode-se dizer que Carvalho descobriu que o que gerou estas e outras mortes nas HQs foi um problema de narrativa. “A fórmula de narrativa onírica e atemporal das HQs não se desgastou, ainda que exista uma ligação entre a narrativa dos quadrinhos e a morte de seus heróis: a relação entre o mundo real e o fictício, a ruptura entre a identidade de um personagem e do mundo que este habita, forçando-o a adaptar-se para continuar plausível.”

Ou seja, conforme o mundo real vai mudando, os heróis das HQs também precisam mudar prara sobreviver. “Quando não consegue adaptar-se à mudança dos tempos e dos valores, quando não pode mudar, o herói está fadado a morrer”, explica.

No caso de Rê Bordosa, com o surgimento da Aids, uma mulher com a personalidade dela – que transava com todo mundo, não usava camisinha, marcava aborto por telefone etc – estava fadada a contrair a doença a não ser que mudasse de hábitos. “Se não mudasse seu jeito, Rê Bordosa não ficaria mais crível para o leitor. Por outro lado, Angeli não  visualizava essa mudança e, portanto, preferiu matá-la dentro da história, fazendo inclusive uma alusão à doença”, conta.

Na época, Angeli admitiu esta razão, pela primeira, vez ao próprio Carvalho, em entrevista que consta da dissertação:  “Eu não poderia contrariar a postura do personagem. Eu não poderia trocar a roupa do personagem, fazer ela casar e transformar em sucesso de novo, que nem a Margarida, o Fantasma que casou… Acho que personagem é aquilo: ele não troca de roupa, o comportamento dele se aprimora.”

Já o Superman, defende a dissertação, morreu – e ressuscitou – justamente para se adaptar dentro da narrativa.  “Com as transformações sofridas em sua personalidade ao longo dos tempos – a chamada humanização – o Super-Homem cada vez mais deixava de ser um herói épico. Houve histórias em que ele até se cortava fazendo a barba… Humano como estava, em breve seus fatos super heroicos entrariam em conflito com sua humanidade, gerando uma contradição intransponível em seu mundo de ficção”, pontua.

Então, diz Carvalho, foi engendrada uma forma de tornar o herói ainda mais épico: ele morreria e ressuscitaria.  “A morte seguida de uma ressurreição reafirma que ele é o maior dos heróis, possível de ser comparado apenas ao maior dos heróis registrados na história e único a ter ressuscitado: Jesus Cristo”, pontua.

Ele ressalta na dissertação que a comparação não é gratuita, já que a própria gênese do herói pode ser facilmente identificada com a do Cristo. Ele veio do céu (a nave espacial o trouxe) e quando chegou uma estrela brilhou indicando o local onde o bebê estava (na verdade, o rastro da nave).

“O vilão que o mata o Superman é um monstro disforme, chamado Doomsday, ou ‘Dia do Juízo Final’. Super-Homem morre para nos salvar e a cena da morte remete de maneira icônica à escultura La Pietá, de Michelângelo, que mostra Jesus nos braços de Maria. Ele morreu, ressuscitou e ao voltar passou por várias mudanças de poder, visual, uniforme e, claro, valores.”

Por fim, para o mestre em Educação, a morte de Sandman chega a ser uma verdadeira metáfora desta necessidade de o herói mudar para se adaptar às histórias e ao mundo.

“Quando não consegue adaptar-se à mudança dos tempos e dos valores, quando não pode mudar, o herói está fadado a morrer – como Rê Bordosa – ou ainda a morrer para que possa surgir de novo, renovado, como também ocorre com o Super-Homem, que morreu, ressuscitou e ao voltar já passou por várias mudanças de poder, visual, uniforme e, claro, valores. Gaiman também metaforiza este tipo de morte com o próprio Sandman, que uma vez morto foi substituído por uma outra entidade que assumiu seu nome e funções, ainda que tivesse personalidade, aparência e valores diferentes… uma faceta da mesma joia.”

Ele conclui: “Gaiman mostra por meio de sua história que a solução para o dilema consiste em aceitar a ruptura e trabalhar por meio dela – quer seja alterando o personagem ou fazendo que morra para dar lugar a um novo herói (ou até uma nova versão dele mesmo) que efetivamente represente os valores vigentes, podendo assim continuar a servir como um modelo mítico que possibilite ao leitor uma forma de explicar o mundo, buscar e experimentar sentidos, colocar a mente em contato com as experiências da vida.”

Clique aqui para ler a dissertação na íntegra

 

Comentar

Follow us

Don't be shy, get in touch. We love meeting interesting people and making new friends.

Most popular

Most discussed

Nós usamos cookies para melhorar sua experiência. Ao continuar, você concorda com nossa Política de Privacidade.