Miller também pisa na bola! Cavaleiro das Trevas: a Criança Dourada é HQ sem pé nem cabeça

Seja apenas só nos argumentos ou quando argumenta e também desenha, Frank Miller é um dos mais geniais autores de quadrinhos que já pisou no planeta. Basta citar uma curta lista de alguns dos seus trabalhos – Batman: ano 1, Cavaleiro das Trevas, Elektra Assassina, Sincity, 300 de Esparta, e Demolidor: a Queda de Murdock – para bater o martelo. O cara é excepcional. Mas os grandes também erram.

Exemplo disso é A Criança Dourada,  one shot “derivado” do terceiro arco de Cavaleiro das Trevas. Apenas lembrando, o original (The Dark Knigh Returns) saiu em 1986/1987 e é o melhor de todos. A parte 2 (chamada carinhosamente de DK2, lançada em 2001) dividiu opiniões, mas no geral é boa, e a terceira (Cavaleiro das Trevas III: a Raça Superior, de 2015/2016) também foi muito elogiada. Este spin off –  lançado originalmente em 2023 –  ocorre depois dos fatos desta última sequência e, sinceramente, não deveria ter ocorrido.

O que se salva são os desenhos do brasileiro Rafael Grampá – que tem merecidamente no currículo um prêmio Eisner 2008 e um HQ Mix 2009, além de um portfólio que inclui trabalhos para Marvel, DC, Image, Dark Horse e por aí afora. O artista desenhou “ao estilo Miller”, mas com um toquezinho pessoal, e o resultado é muito bacana e coerente com as HQs anteriores. O problema é o argumento.

Frank Miller parece que se perdeu no que queria contar. A história se passa três anos depois dos eventos de A Raça Superior. Em tese, Lara – a filha mais velha do Superman e da Mulher Maravilha – está tentando ser mais humana, mas continua achando que a humanidade é fraca, estúpida e não serve para praticamente nada.

Ao lado dela, a “criança dourada”, que é justamente o irmão mais novo, o superpoderoso Jonathan Kent.

Enquanto isso a ex-Robin Carrie Kelley está detonando no papel de Batwoman, combatendo o crime com mão de ferro. E, tudo ao mesmo tempo agora, vão ocorrer eleições e aí, neste ponto, Miller mistura Donald Trump e Bolsonaro (sim, há um tweet do ex-presidente do Brasil na história) com Coringa e… Darkseid.

O resultado é desastroso. Nada se aprofunda na HQ e a coisa fica sem pé nem cabeça. Tentando traduzir a ideia de Miller, aparentemente o autor quis fazer uma reflexão sobre as eleições americanas e a influência das mídias sociais sobre elas, polarizando tudo e causando verdadeiras batalhas campais nas ruas entre eleitores de Trump e os contrários a ele.

Sem fazer nenhum suspense, a HQ revela que o Coringa está por trás da manipulação, agindo em parceria com Darkseid! O que o soberano de Apokolips ganha com isso? Só ele e Miller sabem. Mas os super irmãos (mesmo com o desprezo de Lara em relação à raça humana) vão deter o vilão ultrapoderoso enquanto Batwoman dá conta do Coringa e “liberta” a população das influências nefastas.

Enfrentando os poderes da Supergirl (?) e principalmente de Jonathan, Darkseid literalmente explode numa chuva de sangue, mas ressuscita do nada (ou devido a alguma influência dos raios ômega, quem sabe) para cair na rua e – após nova batalha com os super irmãos – ser deixado sem poderes, levar uma pedrada que lhe tira sangue e, eis o fim da história, se deparar com uma manifestação / grupo de linchamento comandado pela Mulher Morcego.

 

A moça, antes que a turba vá pra cima do vilão (o que fica a cargo do público leitor imaginar se ocorrerá ou não), anuncia que as pessoas não vão se converter ao mal de Darkseid: “Agora cada um de nós pensa por si. Cada um de nós é livre. Por isso vamos vencer.  Por isso, nós sempre vamos vencer.”

Assim descrito, a história talvez até pareça ter um pouco de coerência. Mas não tem. A linguagem da HQ é quase críptica, pedaços são jogados sem nenhum tipo de contexto ou aprofundamento. Nada aparece em mais do que alguns quadros, nem mesmo a tal Criança Dourada. Na maior parte do tempo rapidamente uma cena é cortada para que outra entre, em um ritmo que força uma fluência que a HQ simplesmente não tem.

E olha que, diferentemente dos Cavaleiros das Trevas anteriores, esse spinoff tem apenas os cinco personagens já citados como fio condutor. Não há na história outros heróis ou personagens secundários de destaque como nas originais – a exceção de uma participação, com o perdão do trocadilho, super-rápida do Superman na primeira página. Batman, por sinal o sujeito que leva o apelido de “Cavaleiro das Trevas”, sequer dá as caras. 

Finalizada a leitura, fica claro que Miller queria fazer algum tipo de metáfora crítica à Trump e à direita, algum tipo de libelo à liberdade e necessidade de se pensar com a própria cabeça. Mas falhou miseravelmente. O autor ainda tem crédito sobrando por tudo que fez até agora, mas esse é um daquele títulos que, fosse o próprio Frank um super-herói, não deveria entrar “na cronologia oficial” do personagem.

Apesar dos belos desenhos do brasileiro Rafael Grampá, Cavaleiro das Trevas: a Criança Dourada definitivamente é um gibi que não vale a pena ter na estante. A não ser que você seja um desses colecionadores que quer guardar absolutamente tudo sobre uma obra ou uma obra. Caso contrário, são R$ 14,90 desperdiçados. Ainda bem que existem os sebos.

NOTA DO CRÍTICO: Pavoroso

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

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