Levada ao ar nesta semana na Disney+, já de cara com três episódios disponíveis, a série Ironheart enfrentou resistência antes mesmo de estrear, pelos motivos mais diversos (como antecipou o MundoHQ no começo de junho). Os outros três episódios que compõem o seriado serão disponibilizados no próximo dia 1º de julho, mas a julgar pela metade inicial Coração de Ferro, para quem prefere o nome em português, deixa a desejar.
Os principais problemas são o roteiro fraco e o não-aprofundamento dos personagens, em especial a gangue do Capuz Vermelho, que basicamente é formada por estereótipos de pessoas desajustadas, verdadeiras caricaturas de gente que “não se encaixa.” A ideia básica é que o espectador simplesmente olhe para essas pessoas e entenda que elas são discriminadas pela sociedade só pelo aspecto visual de cada uma, o que em si só já serve mais para reforçar preconceitos, de maneira bastante rasa.
Mas a contradição maior fica mesmo em cima da personagem principal, Riri Williams (Dominique Thorne). Antes da série começar, tanto por causa dos trailers quanto pela sinopse divulgada, já se sabia que ela seria expulsa do MIT e se aliaria a um grupo comandado por um sujeito chamado Parker Robbins (Anthony Ramos), mais conhecido por Capuz, que a convenceria que muitas vezes é preciso seguir alguns caminhos alternativos para fazer um bem maior.
O problema é que estes caminhos “alternativos” são, explicitamente, crimes. E o “bem maior” para Riri parece ser apenas receber dinheiro para fazer a tal armadura “icônica” que ela tanto quer.
Vamos devagar com o andor: quando a série começa, depois de alguns flashbacks (muito bem-feitos, diga-se) de Riri com a melhor amiga, Natalie, o foco passa para o presente da protagonista no MIT. Ali, momentaneamente e uma única vez, ela manifesta uma vontade heroica, dizendo que a armadura que ela desenvolveu poderia “revolucionar a segurança”: “Meus trajes encurtariam o tempo de resposta de socorristas, bombeiros, equipes de resgate (…)”
E já ali é mostrado que para Riri, os fins justificam os meios, pois para conseguir mais recursos ela vende trabalhos feitos para alunos que não têm capacidade ou vontade para cumprirem as próprias tarefas. Isso, efetivamente, irá gerar a expulsão dela da universidade e a levará de volta a Chicago, cidade onde foi criada e na qual irá conhecer Capuz e companhia.
Quando o líder da equipe a convida para entrar no grupo, ela inicialmente resiste, mas basta que ele diga “Quanto vai custar para você mudar de ideia?” e mostre uma mala de dinheiro para que ela efetivamente abandone qualquer resquício de princípios que tivesse mostrado. E neste ponto, Riri pergunta no que ela estaria se metendo e a resposta é clara: “roubo, extorsão, arrombamento e invasão.”
A isso, basicamente a “heroína” responde desde que ninguém morra está tudo bem” e ela está dentro. Porque, claro, ninguém morre em decorrência de coisinhas bobas como estas. O tiroteio do qual Natalie e o padrasto da própria Riri foram vítimas, inclusive, não teriam nenhuma relação com crimes tão “leves”…
Já no primeiro trabalho a pancadaria corre solta na sala de controle dos túneis, com os tais “irmãos de sangue” descendo a porrada em todo mundo. Aparentemente bater para roubar e extorquir pode, só não pode matar. A coisa fica pior porque Riri decide sair da equipe quando, ao receber a informação da polícia que o ex-membro do grupo que ela substituiu apareceu morto, imediatamente conclui que ele foi assassinado a mando de Capuz.
Porém, antes de sair, ela vai fazer mais um servicinho (e tentar neste último trabalho pegar um pedacinho do manto mágico de Capuz pra descobrir exatamente com o quê está lidando). Ela até consegue pegar o trapinho, mas para isso acaba colocando todo o grupo em risco de morte, e acaba ela mesma presa em uma estufa na qual se confronta com outro integrante do grupo, o “primo” John.
Quando ambos estão prestes a serem sufocados pelo ar do local, a armadura de Coração de Ferro – comandada por IA – aparece. E aí Riri entra no traje e foge, deixando o rapaz preso para morrer sufocado lá dentro. E que não venham dizer que o traje comandado por Natalie (Lyric Ross) é responsável pelo abandono, pois é a própria Riri que diz para ser a armadura tirá-la dali e não fala uma palavra para que o rapaz que sufoca na frente dela seja salvo.
Um belo gesto para quem queria um traje “que encurtasse o tempo de resposta de socorristas, bombeiros, equipes de resgate” para salvar mais gente. Ainda que, é bom registrar, aquele momento no início da série foi o único em que Riri declarou que queria fazer algum bem em prol dos outros. Em todos os demais, ela passa a dizer que quer dinheiro para melhorar a armadura e, quando perguntada por que quer fazer uma armadura melhor, a resposta passa a ser um arrogante “porque eu posso.”
Gênia?
Outra contradição do roteiro é a genialidade de Riri. Assim como nos quadrinhos, a garota tem um QI elevadíssimo na série, mas parece não enxergar coisas óbvias. Ela diz não entender como a Inteligência Artificial que criou se parece com sua amiga Natalie, sendo que pouco antes de dar início ao processo se emocionou ao ouvir a voz da amiga em um “mix tape” feito pelo irmão dela, pensa constantemente na colega falecida e obviamente sofre de estresse pós-traumático por causa da tragédia em que ela foi morta. Não é preciso ser um gênio pra ver isso, mas ela não vê.
Mais tarde, quando fala com Joe/Zeke Stane sobre o processo que utilizou para tentar entender o que aconteceu, ele explica a ela que se alguém utilizasse aquele método para criar uma IA teria uma probabilidade gigantesca de derreter o próprio cérebro. Mas ela, gênio, não sabia, e aparentemente sobreviveu e criou algo fantástico por pura sorte.
Aliás, a garota-gênio também não sabia que quando alguém é expulsa de uma universidade, perde o acesso – inclusive login e senha – aos serviços disponibilizados pela instituição. Assim, quando ela entra na armadura ainda no MIT para fugir com o traje até Chicago, aciona uma Inteligência Artificial disponibilizada pela universidade, que pede login e senha.
O que vai acontecer é óbvio para quem está assistindo (aliás, o roteiro é cheio de fatos previsíveis): o acesso de Riri vai ser cortado em algum momento do voo, ela vai ficar sem navegador e cair. Mas claro que isso não é óbvio para a menina superinteligente, que se surpreende na hora que isso acontece e se arrebenta no chão.
Há outras estranhezas de roteiro. O já citado Joe, por exemplo, é mais personagem pouco aprofundado e parece ter sido jogado na história, em vez de introduzido nela. Riri o descobre pela Internet, chega na casa dele e o cara é inteligentíssimo. Ela o chantageia para conseguir acesso aos superequipamentos que ele tem (novamente, uma heroína superética). Mas o fato de ele ser um gênio e ter tecnologia extremamente cara é simplesmente aceito, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Enfim, há momentos no decorrer da série em que a sensação do espectador é que foi tudo meio jogado ali, sem necessidade de um fluxo ou coerência na história. O negócio é aceitar e seguir em frente.
O que tem de bom?
A trilha sonora da série é muito boa e o CGI mostrado até o momento corresponde às expectativas. A citada cena da queda, do ponto de vista de imagem, é muito bem-feita, assim como os demais voos de Coração de Aço e as trajetórias das balas disparadas pelas armas de Capuz também estão no capricho.
Já os cenários e ambientações têm altos e baixos. O bairro de Riri em Chicago ficou muito bom, não só pela arquitetura como pelo detalhamento de lojas, cartazes e murais (que incluem ícones negros da música). Aliás, tanto neste quanto em outros cenários os cartazes são muito bem utilizados, seja para ambientação (é possível ver pôsteres do Chicago Bulls, por exemplo) como para induzir quem está assistindo sobre panos de fundo.
É o caso de alguns sobre a peça “Fausto” – aquela na qual um homem faz um pacto com o diabo – em momentos que antecedem ou coincidem com a aparição do Capuz. Nas HQs ele roubou a capa e as botas de um demônio e acaba “vendendo a alma” para Domammu, um capeta famoso das histórias do Dr. Estranho. Já na série há quem diga que o demônio por trás do pacto será Mefisto, cramulhão-mor do Universo Marvel cuja aparição no cinema é esperada há décadas.
Por outro lado, há cenários que ficaram muito falsos. O tal túnel de alta tecnologia, por exemplo, talvez tenha buscado alguma referência em clássicos como Tron ou mesmo no transporte de Wakanda, mas ficou com jeitão das corridas do filme do Speed Racer de 2008. Um parêntese: a cena do túnel é outra extremamente previsível: é óbvio que Natalie vai conseguir acessar a armadura e atrapalhar o plano, que Riri vai derrubar o pendrive e é mais que claro que ela não vai ser esmagada pelo sistema de transporte dos carros “por pouco.”
De volta aos cenários ruins, outro destaque é o complexo de estufas do segundo golpe dos bandidos. Na sala onde o Capuz aborda o CEO da empresa (e na qual Coração de Ferro tenta cortar um pedaço do manto) a indicação de alta tecnologia é basicamente o excesso de luz neon. E as plantas das estufas parecem aquelas decorações feitas de plástico de buffet de festa de aniversário de segunda categoria.
Há salvação?
Os três últimos capítulos de Ironheart saem no dia 1º e é preciso assistir a todos antes de um veredito final. Talvez ainda seja possível justificar a falta de “inteligência funcional” da garota-gênio por causa do estresse pós-traumático, bem como o assassinato doloso de John pela mesma razão, com um possível atenuante de legítima defesa.
Quem sabe dê para perdoar a vida no crime de Coração de Aço graças a um caminho de redenção e sacrifício que venha a surgir na última parte da série – provavelmente auxiliado pela Inteligência Artificial Natalie, que se comporta como uma consciência a la Grilo Falante da protagonista.
E é possível ainda dar um desconto para a série levando-se em consideração que ela levou quatro anos e meio para se concretizar, ou seja, foi iniciada em 2020 em um período em que a Marvel estava priorizando quantidade em vez de qualidade. E sofreu com impactos da Covid, greves de roteiristas etc.
Mas mesmo que tudo isso ocorra já é possível afirmar que Ironheart deixou a desejar – ainda mais depois da boa Agatha Desde Sempre, que a antecedeu no Disney+. E que, a não ser que ocorra uma reviravolta muito grande, Coração de Aço está destinada a fazer parte do pelotão debaixo das séries Marvel, bem longe das melhores já lançadas.
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