Em outubro de 1997, a extinta revista Metal Pesado resolveu fazer uma edição especial para comemorar os 15 anos da Gibiteca Municipal de Curitiba. Para realizá-la foram convocados vários quadrinistas locais e entre eles surgiu um grupo com a ideia de fazer um super-herói regional.
Inspirando-se na ave símbolo do Paraná, os onze artistas criaram Gustavo Borges, um adolescente curitibano que seria descendente de um antigo herói dos anos de 1940, chamado Capitão Gralha. Misto de Flash Gordon e Superman, o tal capitão era um fugitivo de um planeta de homens-pássaros – regido pelo “terrível Thagos”, o usurpador – que encontrou refúgio na Terra, onde utilizava poderes alienígenas no combate ao crime em Curitiba. Décadas depois, o jovem Gustavo assumiria aluta contra o crime com novo uniforme e nome: o Gralha.
Alessandro Dutra criou o visual básico do personagem, Gian Danton e José Aguiar criaram o argumento, Antonio Eder, Luciano Lagares, Tako X, Edson Kohatsu, Augusto Freitas, Dutra e Aguiar se encarregaram da arte e Nilson Miller fez a capa da edição.
Assim, em 1997, o Gralha apareceu pela primeira vez e, um ano depois, já ganhava uma página semanal no caderno Fun da Gazeta do Povo, onde foi publicado até o ano 2000. O personagem era um herói iniciante em uma metrópole um pouco diferente da Curitiba de hoje. Na opinião dos autores, “talvez a única cidade do país onde um super-herói se enquadraria sem parecer (muito) deslocado”.
O Gralha também ganhou uma série de HQs na Internet, em uma página que trazia várias informações sobre quadrinhos, mas na qual ele era obviamente a atração principal. E uma atração que vale a pena conhecer.
Como as histórias são desenhadas e têm roteiro de vários autores (o grupo original continuou se revezando nas HQs), cada aventura tem um estilo diferente. Alguns dos autores gostam do estilo super-heróis, outros abertamente o detesta.
Uns o desenham cartunizado, alguns realisticamente ou até mesmo de maneira abstrata. Junte-se isso aos bons argumentos, muitas vezes misturando aventura e bom humor, e as HQs são ótimas para se ler.
Vale ressaltar um grande diferencial do Gralha: além do personagem principal ter o nome da ave que tem papel fundamental no equilíbrio ecológico do Paraná (são as gralhas que espalham as sementes da araucária), tanto heróis como vilões têm nomes brasileiros e, na maioria dos casos, derivados de substantivos e expressões regionais.
Em 2011, a editora Via Lettera lançou uma coletânea do personagem, que venceu o 14º Prêmio HQ Mix como melhor álbum de ficção. Em 2014 foi lançado um segundo álbum, O Gralha – Tão Banal Quanto Original, publicado pela editora Quadrinhópole, com histórias inéditas.
O personagem ganhou ainda uma terceira coletânea de quadrinhos em 2016: O Gralha – O herói, o pinhão, o louco e a morte. O super-herói curitibano também chegou a outras mídias. Em 2005, estreou no teatro a peça O Gralha: Curitiba, Cidade do Pecado, escrita e dirigida por Edson Bueno.
Também foram lançados dois curtos metragens em live action – O Gralha – O Ovo ou a Galinha (2002) e O Gralha e o Oil Man – Um Encontro Explosivo(2004) – e uma animação, O Gralha em A disputa, que pode ser encontrada no Youtube.
Enredo
A história se passa em Curitiba, em um futuro próximo e mais tecnológico. Gustavo Gomes, um adolescente de aproximadamente 19 anos, “herda” os poderes de um parente distante (o Capitão Gralha). Por meio de duas pedras coladas à roupa, o rapaz ativa capacidades latente: para que isso ocorra é necessário que ele as toque com sua pele. Se tocar em apenas uma, seus poderes seriam parciais e mais difíceis de controlar.
O Gralha ainda não conhece a real extensão dos poderes que adquire nem tem total controle sobre os que já conhece, ficando na tentativa e erro. Os poderes do Gralha são, na definição dos autores, o “kit básico” do super-herói com mais algumas coisinhas: vôo (com velocidade máxima seria cerca de 300 Km/h) e superforça (o suficiente para suspender 10 toneladas de peso do solo, ‘algo como levantar um fusca, mas nunca arremessaria um caminhão por exemplo’).
Além disso tem “poderes sonoros”: pode encontrar a freqüência de ressonância de até mesmo uma estrutura atômica, destruindo assim um objeto específico. É uma capacidade que ele não domina plenamente, apelidada vulgarmente de “Grito do Gralha”; ventriloquismo (pode facilmente criar vozes e projetá-las onde bem quiser); super audição (de alcance não muito grande, algo em torno de até cerca de 30 metros ao ar livre).
Tem ainda um poder de sugestão: pode gerar certas frequências sonoras que alteram a percepção que o cérebro humano tem da realidade. Mas não tem controle sobre o que as pessoas vêem quando estão nesse estado “hipnótico” e o resultado pode variar de um indivíduo para outro.
Quando não é o Gralha, Gustavo é um adolescente que possui poucos amigos e é uma pessoa razoavelmente introvertida. Faz cursinho pelo segundo ano seguido, pois no primeiro descobriu os poderes e acabou dando pouca atenção aos estudos porque tinha de salvar o mundo…ou pelo menos Curitiba.
Mora sozinho numa kitnet e vive da mesada paga pela mãe, que vive no Interior. A cidade de Curitiba é um personagem à parte no universo do Gralha, com todas as características da verdadeiras elevadas à enésima potência. Localizada num futuro indeterminado, nela convivem arranha-céus gigantescos e muitas, muitas árvores.
Essa Curitiba parece crescer ordenada e infinitamente, chegando até mesmo ao Atlântico. Na verdade, ela é o paraíso de todo super-herói, com todos os lugares-comuns do gênero “herói encapuzado” que existem.
Personagens
Além de Gustavo/Gralha, o grande destaque são os vilões como:
Dr. Botânico – Todo herói precisa de um cientista louco e o doutor é o clássico modelo de cabelos arrepiados e jaleco de professor. Antes de enveredar pelo crime era um renomado biólogo que descobriu como dar consciência às plantas e que trabalhava para o governo. Quando em visita ao seu laboratório, no Jardim Botânico, um secretário da prefeitura foi atacado por uma de suas criações e, horrorizado com o trabalho do doutor, cortou-lhe as verbas. Desamparado e desesperado, ele se valeu de suas sementes especiais, para criar um exército de plantas humanóides para destruir a cidade em sua vingança pessoal.
Araucária – ex-assistente do dr. Botânico, foi usada como cobaia num experimento para a criação de um híbrido meio animal, meio planta. Trocou seu sangue por seiva, se tornando extremamente forte e capaz de alterar sua estatura de meros 1,60m para até o tamanho do mais alto pinheiro. Extremamente gananciosa e sensual, suspeita-se que já teve um caso com o Gralha.
O Bagre Humano – Nasceu em Paranaguá e que dizem ser sua mãe uma sereia. Graças a sua aparência pouco agradável e ao preconceito, é um eterno descontente. Ranzinza e introspectivo, seus crimes sempre estão ligados a alguma coisa que o incomoda e o leva a alguma medida extrema, que prejudica as demais pessoas.
Café Expresso – Bizarro criminoso que possui uma cafeteira no lugar da cabeça. Antes considerado mais uma lenda urbana que servia café envenenado a vítimas aleatórias. Foi descoberto quando matou 54 pessoas de uma só vez, servindo-lhes café com estricnina. Teria enlouquecido após a trágica morte de sua esposa, de alguma forma ligada ao café. É ,na verdade um romântico homicida. Sua verdadeira identidade é um mistério. Especula-se que tenha sido um garçom na Boca Maldita, um ponto de encontro entre artistas e intelectuais de Curitiba.
O Craniano – Um homenzinho estranho com um crânio imenso tatuado com estranhos caracteres que lembram uma pessanka (ovo pintado ucraniano), Dono de um supercérebro, capaz de superar até mesmo o gênio do Doutor Botânico. Extremamente calculista e incapaz de expressar emoção. Possui total desprezo pela humanidade, não ligando para dinheiro ou mesmo poder político. Seus objetivos dizem respeito apenas a si mesmo, não se importando com quem cruze seu caminho. Dizem que atua ao lado de um certo “João- Ninguém”.
Biscuí do Mato – Maníaco extremamente perigoso e violento. Se veste de maneira extravagante e aparentemente sem nenhum significado específico, assim como seu nome. Nada além disso sabe-se a seu respeito.
Pivete Cibernético – Garoto de rua revoltado, porém inventivo e extremamente hábil com o skate. Possui grandes conhecimentos de mecânica para sua pouca idade, tanto que desenvolveu um skate turbinado voador. Especializado em pequenos furtos.
Completam a lista o Homem Lambrequim (que tem um machado no lugar da cabeça), o doutor Marrom e a Polaquinha, entre outros.
Curiosidade: personagem surgiu com fakenews
Era para ser uma brincadeira, mas saiu fora do controle e se tornou uma das maiores fakenews da história dos quadrinhos no Brasil. Quando criaram o Gralha, em 1997, os onze autores do personagem inventaram uma história de fundo que acabou convencendo muita gente.
Eles afirmaram que o “Capitão Gralha”, aquele parente distante do protagonista, tinha sido um personagem real criado nos idos de 1940 por um autor esquecido, um tal Francisco Iwerten. Artista dos bons, Iwerten – que até teria sido amigo de/trabalhado com Bob Kane, criador do Batman – era um pioneiro do gênero super-herói no Brasil, mas, infelizmente, publicara apenas duas edições do Capitão Gralha, das quais ninguém sabia se havia sobrado algum exemplar. Havia, apenas, a cópia de uma capa puída de uma delas.
Assim, diziam os integrantes do grupo, O Gralha (criado por eles) era uma espécie de releitura e homenagem a um herói desconhecido dos quadrinhos curitibanos e a um artista renegado pela memória do país. Era tudo mentira para chamar atenção da mídia e do público. O problema é que o plano funcionou bem demais.
Sem ter como conferir as informações, muitos órgãos de imprensa repetiram a história falsa em matérias sobre o Gralha. Isso iniciou, inclusive, um burburinho sobre a falta de reconhecimento do artista nacional, que desaguou em um prêmio Angelo Agostini in memoriam dado a Iwerten em 2006 como Grande Mestre do Quadrinho Nacional. A fakenews continuava a crescer a ponto de haver quem afirmasse que Iwerten teria sido co-autor do Batman.
Só em 2014, dezessete anos depois, a história foi oficialmente desmentida pelos autores no álbum O Gralha – Tão Banal Quanto Original. E, no ano seguinte, o prêmio dado ao autor inexistente foi revogado – até recentemente, porém, ainda era possível achar matérias e páginas na Internet dando a história de Iwerten e Capitão Gralha como verdadeiras.
Aproveitando a onda, em 2016 a editora Quadrinhópole lançou, propositadamente em 1º de Abril (Dia da Mentira), o álbum As Histórias Perdidas do Capitão Gralha e, no mesmo ano, Francisco Iwerten – biografia de uma lenda. Escrita por Antonio Eder e Gian Danton, a “biografia” conta na primeira parte a história fictícia do autor inexistente e, na segunda, a história real de como foi criada a brincadeira que fugiu do controle.
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