Diz a lenda que o editor Toninho Mendes, responsável por publicações antológicas do quadrinho de humor adulto brasileiro nos anos de 1980, uma vez teria comparado o cartunista Glauco Villas Boas com o jogador Garrincha. Isso porque, assim como o futebolista, Glauco era intuitivo, talentoso e, com seu jeito único, levava o sorriso ao rosto de quem via seu trabalho.
A comparação descreve de maneira sucinta e exata o paranaense de Jandaia do Sul que criou personagens inesquecíveis, como Geraldão, Dona Marta, Casal Neuras, Doy Jorfe e tantos outros tipinhos fantásticos. Nascido em 1957 na cidade localizada a 44 quilômetros de Maringá, Glauco começou a desenhar no segundo grau – assim como o irmão, o também cartunista Pelicano – e era conhecido no colegial pelas caricaturas bem-humoradas que fazia de professores e colegas.
Mudou-se para Ribeirão Preto nos anos 70 para prestar vestibular: sonhava em cursar Engenharia. Pouco antes do exame, porém, seus desenhos foram descobertos pelo jornalista Hamilton Ribeiro, que dirigia o Diário da Manhã. Ribeiro o contratou e ele fez sua estréia nas páginas do matutino com a tira Rei Magro e Dragolino. “Era um rei muito louco, que vivia fumando um baseado, e o Dragolino enfrentando ele. Era essa dupla, num universo de hippie, de rock”, contava.
Em 1976, foi premiado no Salão de Humor de Piracicaba: o prêmio abriu as portas do jovem cartunista para a grande imprensa. Em 1977 começou a publicar esporadicamente na Folha, no caderno Acontece. “Também estava surgindo o Folhetim, que o Tarso de Castro dirigia, e o Angeli era responsável por uma seção de humor na contracapa, que chamava Viralata. Aí eu comecei a publicar toda semana nessa seção. Foi esse o começo na Folha”, relembrava Glauco.
Em 1984 a Folha criou a seção de quadrinhos para desenhistas nacionais e Glauco começou a desenvolver tiras diárias. Seu maior sucesso viria em 1981: Geraldão, um solteirão de 30 anos, virgem, que morava com a mãe (e com quem mantinha um relacionamento edipiano para Freud nenhum botar defeito). Além da fama, Geraldão também trouxe a Glauco problemas com donos de jornal conservadores. “Ele aprecia com o bimbão de fora e não queriam mostrar em alguns jornais.”
Também em 1981, surgiu dona Marta, uma solteirona tarada que atacava diversos homens em busca de um amor, sem muito sucesso. Em 1984, viria o Casal Neuras, que acabou virando até mesmo quadro de TV e peça de teatro. Aliás, Glauco também foi roteirista dos programas TV Pirata e TV Colosso.
Junto com Angeli e Laerte, criou Los Três Amigos. A amizade entre os cartunistas, por sinal, gerou algumas das melhores histórias de humor e crítica social do Brasil – muitas delas podem ser conferidas na coletânea Seis Mãos Bobas, da editora Devir.
“Ele era totalmente desencanado com escolas e ideologias: atuou em contextos políticos, religiosos e de entretenimento quase sempre da mesma forma”, diz Laerte, para quem o trabalho de Glauco tem uma forte influência de Henfil (com quem Glauco e o cartunista Nilson chegaram a morar no final dos anos 70).
Para Angeli, o trabalho de Glauco revolucionou o humor brasileiro pós-ditadura militar, o que influenciou outros cartunistas como Laerte e também ele próprio. “A gente procurava esse frescor, mas não conseguíamos, e o Glauco veio com a maior leveza e emplacou esse tipo de humor, que, durante a época da ditadura, foi abafado. Tinha algo que se encaixava entre mim, Laerte e Glauco”, conta Angeli.
Adão, que mais tarde se juntou ao grupo, lembra de uma das características marcantes de Glauco: chegar atrasado ou não ir aos encontros do grupo. “O Glauco costumava faltar bastante aos encontros de Los 3 Amigos, pelo menos na época em que eu participei do bando. Mas, quando ele aparecia, dava conta do recado em segundos e logo sumia novamente. Ele tinha um dos traços mais difíceis de imitar. Era muito caligráfico, quase uma assinatura.”
Guitarrista e acordeonista, Glauco também inspirou personagens dos colegas, em especial por causa de sua busca por religiosidade. O próprio Angeli baseou-se nele para criar o Rhalah Rikota já que, na época, o pai de Geraldão era seguidor do guru indiano Rajneesh”, diz Angeli. “Eles sempre me gozaram muito por causa do meu lado místico, principalmente depois que entrei para o Santo Daime”, contava Glauco, que dirigia um centro de estudos que usava a bebida feita de cipó -a ayahuasca- para fins religiosos, em cerimônias inspiradas em rituais praticados por índios da Floresta Amazônica.
A vida de Glauco foi brutalmente interrompida em 12 de março de 2010, quando o cartunista e seu filho de 25 anos, Raoni, foram brutalmente assassinados dentro da casa da família, em Osasco.
Quando Glauco morreu, inúmeras homenagens foram feitas pela sociedade e fãs e desenhistas fizeram um grande tributo homenageando-o com desenhos. O cartunista Spacca, publicou em seu blog uma bela mensagem com a charge abaixo, e fez considerações analíticas sobre o desenho do amigo, que reproduzimos após a charge.
Características dos desenhos de Glauco
1. o absoluto 2D. Desenho egípcio, chapado, bidimensional. Nestes tempos de louvação do 3D isto merece ser resgatado.
2. a passagem brusca de um quadrinho para o outro. Mudanças rápidas. Grande senso de tempo. Pá-pum. Pano rápido.
3. idéia muito direta, sem frescura.
4. Movimento frenético e congelado ao mesmo tempo; bracinhos e perninhas multiplicados, com o mesmo peso (não é que um é presente e o outro é passado, rastro; os membros se multiplicam mesmo).
5. Uma certa singeleza caipira, maroto e envergonhado, malícia de Jeca.
Ele lembrava de umas coisas constrangedoras e bregas, daquelas que todo mundo sabe mas ninguém fala: complexos, traumas, briga em família, ciúmes, inseguranças. A coletânia de tiras “Abobrinhas da Brasilônia” traz umas coisas assim.
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