Estrada para a perdição

HQ de gangsters ganha versão para o cinema com Tom Hanks e grande elenco

DELFIN, especial para o MundoHQ

É a grande notícia que intersecciona os mundos dos quadrinhos e das telas em 2002: muito mais que Homem-Aranha, o grande filme baseado numa HQ neste ano é uma história de amor e vingança no submundo dos anos 30 dos Estados Unidos. Com pesos-pesados do cinema, como Tom Hanks, Jude Law, Jennifer Jason Leigh, Paul Newman e o diretor Sam Mendes, Estrada para Perdição (Road to Perdition) pode ser o primeiro longa-metragem da história dos filmes baseados em quadrinhos a levar o cobiçado Oscar de melhor filme daqui a alguns meses.

O filme deve realmente encantar as platéias, mas, apesar de respeitar a base original dos quadrinhos, pode decepcionar um pouco quem leu a história original, de autoria de Max Allan Collins. A começar pela adaptação do nome original do protagonista, agora Michael Sullivan. Na HQ, o sobrenome é O’Sullivan, e é um nome que traz, na simples letra a mais, todo um histórico de um povo, o irlandês, nos EUA daquela época. Uma história quase sempre de humilhações e nada bonita, que se confunde com o submundo portuário e criminoso daquele começo de século, e que se perde em parte na omissão deste "detalhe".

Mas Michael ainda é o principal soldado a serviço da família Looney (no filme, Rooney), os chefes da maior quadrilha mafiosa de Rock Island. E sempre cumpriu com presteza seu serviço, por precisar honrar seus deveres como pai e marido. Pela família, O’Sullivan faria o que fosse preciso. Inclusive matar. E é o que ele, católico, sabia fazer melhor.

Por isto mesmo, é conhecido por todos os mobsters americanos como "o Arcanjo da Morte". E tudo corria bem, até o dia em que seu filho mais velho, Michael Jr., resolve descobrir o que seu pai faz da vida. E descobre, da pior forma possível, que ele não joga no time dos homens bons, testemunhando um crime. Infelizmente ele foi visto. E, apesar de escapar da morte naquele momento por intervenção de seu pai, estava ali selado o destino do resto da família, brutalmente assassinada pelos capangas de Looney.

Então começa todo um jogo de alianças, conchavos e vingança que envolve até mesmo o mais poderoso chefão da máfia de Chicago, Al Capone, e o líder dos Intocáveis, Elliot Ness. E quase todos, quer por política, quer por simples revanchismo, quer por apenas cumprir ordens, estão contra o Arcanjo e seu filho, a esta altura representando dois ronins saídos de páginas detetivescas.

A comparação não é descabida e a própria citação inicial de Kazuo Koike, no primeiro volume da edição nacional de Estrada para Perdição (publicado no Brasil pela Via Lettera) é a chave. Koike é aclamado mundialmente por ser o roteirista do primeiro mangá realista de sucesso no Ocidente, Lobo Solitário, há mais de vinte anos. E a história de Itto Ogami e Daigoro, o pai e o filho ronins (que quer dizer samurai errante) que seguem pelo mei-fumado (a trilha do assassino), é um paralelo perfeito à história contada por Collins. Tanto Ogami quanto O’Sullivan seguem suas estradas de modo a limpar seu nome, manchado pela traição de seus antigos chefes.

E, para isso, não importam os meios utilizados, mas sim os fins a se atingir. A honra os guia, mas, no caso de O’Sullivan, ainda existe um outro elemento-chave: a fé. Por todo o seu trajeto, os mandamentos cristãos podem não pontuar todos os seus atos. Mas ele sabe que estas são as leis da vida, e que talvez os mandamentos sejam maniqueístas a ponto de não apreender em si as exceções existentes em qualquer regra.

E é assim que Michael, pai e filho, caminham pelo mundo, numa rota que parece interminável, rumo à perdição. O clima é reforçado pela arte impressionantemente realista de Richard Piers Rayner. Arte, aliás, que Collins faz questão de ressaltar como ins-piradora à realização do filme: "Existe um sem-número de painéis essencialmente recriados na película. Um que me saltou aos olhos foi o que mostra Michael Jr. olhando para o horizonte de Chicago refletido num vidro", diz o autor (clique aqui para ler entrevista com Collins).

Fora isso, a densidade foi comprometida na adaptação de roteiro para o cinema, realizada por David Self. Talvez fossem exigências dos astros do filme, talvez fosse o medo eterno dos estadunidenses de colocar qualquer dedo numa ferida, mesmo que aparentemente cicatrizada. Talvez, afinal, seja apenas a necessidade que Hollywood tem de deixar as histórias cruas com um aspecto mais asséptico. O que, em momento algum, tira os méritos do filme. No entanto, infelizmente arranca alguns dos melhores méritos da história original de Collins e Rayner. E, desta forma, a estrada acaba seguindo rumo ao comum, numa das maiores chances perdidas de redenção total da sétima arte em relação à nona.

Djota Carvalho

Dario Djota Carvalho é jornalista formado na PUC-Campinas, mestre em Educação pela Unicamp, cartunista e apaixonado por quadrinhos. É autor de livros como A educação está no gibi (Papirus Editora) e apresentador do programa MundoHQTV, na Educa TV Campinas. Também atuou uma década como responsável pelo conteúdo da TV Câmara Campinas e é criador do site www.mundohq.com.br

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